Deslizes civilizacionais

[dropcap]A[/dropcap] forma trivial como Bolsonaro nomeia ministros tornou-se tão deslustrosa que hoje ninguém arrisca “credibilizar” a pasta da Cultura. O que já fora comentado, ironicamente, por Drummond de Andrade, numa crónica. É no livro De Notícias e Não-notícias faz-se a Crônica, num precioso microconto: « — Esse vai ser ministro, sentenciou o pai, logo que o garoto nasceu. — E você, com esse ordenado micho de servente, tem lá poder pra fazer nosso filho ministro?, duvidou a mãe.» No baptizado, ao enunciar o nome do filho, o personagem de Drummond proclamou: «— Ministro. — Como?, estranhou o padre. — Ministro, sim senhor, teimou o pai, irredutível. A mulher ainda tentou corrigir: — Tonzinho, não foi Antônio de Fátima que a gente combinou?». Melhor, é impossível.

O que era afinal a civilização democrático-liberal? A elegância, a leveza, a dignidade que nos eram consentidas no fluxo do quotidiano e o sentimento de que as instituições funcionavam capazmente (i.é, sujeitas a erros e acertos periódicos) na regulação social; tendo como base valores éticos que protegiam um sentimento de pertença comum.

O que se conseguiu à custa da clivagem entre narrativas civilizacionais ou até de guerras e obrigou a novas formas de gerir o conflito e as mediações humanas, tendo mudado inclusive o estatuto das ficções, crescentemento palco de simulações das dinâmicas sociais. Isso mexeu com as próprias formas criativas, deu-lhes pano de fundo, mercados, complexidade, subtileza – refinou-lhe os processos.

Vou dar um exemplo extraído de um filme que se encontra no Youtube. Trata-se de Youngs Lions, de Edward Dmytryk, de 1959; conta a história de três tipos: um tenente alemão gradualmente céptico com a razão da guerra e dois americanos que vão servir no exército a contragosto (um cantor da Broadway e um rapaz pobre de origem judaica). O enredo entrecruza os variados pontos de vista acerca do conflito e os elos humanos que nutrem os dois lados da batalha.

Marlon Brando é Cristhian, da Baviera, instrutor de esqui, que será um tenente do exército incomodado com a nazificação do espírito alemão. Mandado para Paris, enfiaram-no na Gestapo, com cujos métodos discorda, e pede uma licença ao seu capitão para ir a Berlim. Este, que vê nele um bom militar a quem só falta obedecer sem se interrogar, pede-lhe que entregue uma mantilha de renda preta que comprou à sua mulher e lhe “transmita o seu afecto e como pensa nela constantemente”.

Cristhian faz a visita à esposa do capitão. Esta, de uma beleza e sensualidade ímpares, está de saída (vai encontrar-se com um general), mas sugere que a aguarde “pois quer falar com ele sobre o capitão”. Ele fica por deferência, dir-se-ia que o seu gesto se entroniza na aprendizagem da obediência que o capitão lhe quer incutir. Ela volta de madrugada e acorda-o com suavidade. Ele quer compor-se, julga-se numa postura imprópria em casa alheia, mas ela mete-o à vontade e inverte os papéis, perguntando-lhe “se ele não lhe oferece uma bebida”.

Depois, en passant, ele queixa-se de não ser soldado e de ter sido posto na polícia (nesta fala abre-se uma ética) e ela confia-lhe que pode mexer os cordéis para o transferirem. Como? Ela, despindo-se, insinua, “com esforço…”. Cristhian compreende que é uma questão de troca de “esforços” e, fiel à transmissão de afecto que lhe pediram que fizesse, satisfá-la sexualmente com uma obediência cega ao acto.

O jogo destes matizes subtende uma ironia subtil, feroz, inteligentíssima: a cena vale o filme.

À frente, uma segunda cena entre os dois dá-nos a chave do “ethos” de Cristhian.
Fim da guerra. Cristhian, que vira o capitão em péssimo estado no hospital, volta a visitar-lhe a esposa. A casa está arruinada e a rua derruida, sob efeito dos bombardeios. Ela fala-lhe friamente da morte do marido, que entretanto se suicidou. Não se mostra alterada e atira-se de novo a ele. Ante as suas reticências, ela pede-lhe para ser “realista”. Cristhian percebe: o que antes se lhe afigurava uma marca de liberdade afinal não passa de um expediente de sobrevivência a todo o transe – mete-lhe agora repulsa a beleza dela, afinal um signo do degradado vaivém dos afectos com que o sistema corrompeu o espírito alemão e lhe ditou a crueldade. A corrupção, percebe aí Cristhian, começa na forma como cedemos aos apetites, lhes obedecemos – paradoxal caminho da derrota. Rejeita-a, e nesse gesto repele a sua anterior cumplicidade com a abjecção.

Nas duas cenas, através das peripécias da intimidade, transparece o arco e o declínio de uma postura civilizacional e por isso são magníficas – embora sejam ideias de argumento que Dmytryk se limita a ilustrar.
Contudo, para se conseguir esta complexidade das personagens, esta filigrana que oferece vários níveis de leitura para as situações dramáticas e o implícito que abre chaves no jogo psicológico foi preciso uma tradição narrativa que levou séculos a apurar-se e que supunha um modo fecundo de relacionamento com o que seja a inteligência e o modus operandi da criativa ociosidade burguesa.

O que está colocado em causa nesta época sombria. Estamos de novo na temperatura civilizacional de onde emerge a mediocridade e a confusão de valores que levou Cristhian a equivocar-se em todas as escolhas políticas. Como acontece ciclicamente, acomodamo-nos à patética fase de exibição narcísica em que não nos rala ficarmos mais tolos, egoístas, e naufragados na iliteracia. Escuda-nos a ilusão de que tudo tem um preço: primeiro efeito do triunfo niilista. A vaga anti-intelectual que sacode os orgãos de comunicação ajusta-se.

Trump, que ridiculamente se diz o novo guardião do Cristo Redentor, ao “nacionalizar” as vacinas para o Covid-19 esvazia com isso os valores cristãos que protegiam a validade de uma pertença comum. A contradição não lhe importa, Trump, num lance de poder travestido de nacionalismo espera ter corrompido a vontade dos votos. Assim começam os fascismos.

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