Cheira-me que

Santa Bárbara, Lisboa, quinta, 23 Abril

[dropcap]A[/dropcap]nda uma excitação no ar a propósito de livros e leituras. Como há semanas só apanho ar de varanda, ainda para mais contaminado com inesperadas obras de embelezamento de passeios e canteiros, pode ser que esteja a farejar mal, mas não encontro razões para celebrar esse suposto reencontro do livro e dos leitores. Não alinhámos nas celebrações marqueteiras do dia mundial do dito, ocupados que estamos a renovar o site da abysmo, que bem precisado estava, e na recolha de materiais para futura revista digital, maneira de sacudir o torpor. E navegamos pelos dias a pensar, apesar de expressamente proibido pela doutora, enquanto interpretava os resultados do sangue.

Continuemos a mexer no horizonte das lombadas, na busca parva de casualidades que fundamentem este livro e não outro. Os tolos dão muita importância a estas coincidências, diz Francisco Umbral em um dos contos – saborosos que nem pinchos em La trucha – de «Historias de amor y viagra» (ed. Planeta), e remata: «la metafísica de los tontos es la casualidad». Um jornalista de meia-idade, fazem questão de dizer, é convidado a experimentar a novidade do final dos 1990, o Viagra, e disso faz dele pretexto para investigações ao desejo e mais além. «Sabemos que o eu começa onde o nosso desejo acaba, mas ninguém dá o passo adiante, por preguiça, por medo». Apesar das mortes e da melancolia, não se trata de policial, embora lhe roube o tom cínico de quem está sobrevoando, de passagem, vendo ao longe. A frase discorre com invejável ligeireza, esculpindo personagens de vulto, e colocando-as em cena montada pela mais fina observação, soltando sentença aqui, piscando o olho aos clássicos além. Leitor de águas profundas sabe vir à superfície do banal para respirar. A mulher deste habitat interessa-me, e muito, até por desafinada com o óbvio dos dias, mas foi a cidade que me matou. Madrid está toda aqui, com crueldade e cheiro, as marcas distintas de chão e varandas, de cor e parques, de temperatura e sujidade. Não sei se chega a ser amor, mas sacrifica-lhe tantas palavras que parece fazer dela mais causa que cenário. E não se limita ao exterior, os bairros medem-se aos palmos de parede. No conto mais tocado pelo spleen de meia-idade, sobretudo com a queda para avaliação enquanto forma da memória, «Isabel», as descrições do bairro e do apartamento, com livros de alto expressionismo, alcançam luminosa intensidade. Mas, por causa da metafísica dos tontos, vou buscar a outro o acesso a essas personalidades que as partes da nossa casa assumem agora de um dia para o outro, inesperadas e cheirosas: «olor a vieja, olor a militar, olor a hiperrealismo, olor a bragas, olor a niño muerto, olor a mujer dormida, olor a cuarto de la plancha, olor a cocina abandonada, olor a coliflor.»

Foi pelo título que a mão sacou o Milan Kundera de «A Lentidão» (Edições Asa). A novela tem raízes no Vincent Danon de outro texto, esse magnífico que não encontro – a que cheirará a habitación da biblioteca onde se esconde? Curto-circuita-se com o anterior no fio vermelho do desejo, invocando logo cedo Epicuro para explicar, que o hedonismo não está tanto na busca do prazer quanto na ausência de sofrimento. E nisto me comprazo, nisto e na relação que o escritor procura provar entre lentidão e memória, anverso de velocidade e esquecimento. Com que forma nos marcará esta experiência de confinamento, tatuagem ou cicatriz? «A Senhora de T. soube imprimir ao escasso lapso de tempo que lhes coubera como que uma pequena arquitectura maravilhosa, como que uma forma. Imprimir forma numa duração, tal é a exigência da beleza, mas também a da memória.»

O cheiro a livros velhos punha a cabeça de «Moravangine» (ed. Ulisseia, mas ainda circula a da Cotovia) a andar à roda. As mãos do Bernardo [Trindade], sobretudo se em visita de médico, trazem sempre sábios volumes. Na tradução fiel do Ruy Belo e com capa de Espiga Pinto, este romance de vida de Blaise Cendrars pôs-me o corpo a andar à roda. Com a aventura e o delírio, das máquinas e das revoluções, das paisagens e das cidades, das longas descrições, das volúpias assassinas. E o ritmo. «Não há ciência do homem, o homem é essencialmente portador de um ritmo.» Não esqueçamos essa omnipresença: «as doenças existem. Não as fazemos nem as desfazemos a nosso bel-prazer. Não somos senhores delas. Elas é que nos fazem, nos modelam. Talvez nos tenham criado. São próprias desse estado de actividade a que se chama a vida. Constituem talvez a sua principal actividade.» Páginas febris se sucedem. A febre, em Blaise Cendrars, faz-se estilo. «As epidemias, de maneira particular as doenças da vontade, as neuroses colectivas ficam a marcar, à semelhança dos cataclismos telúricos na história do nosso planeta, as diferentes épocas da evolução humana».

Santa Bárbara, Lisboa, sexta, 24 Abril

Quase sem querer, vejo-me metido com outros (pequenos) editores em gesto de organização tão raro que seria precioso se o resultado fosse distinto. Escrevemos à Ministra da (pouca) Cultura a pedir, face à crise, o óbvio gritante: em resposta à crise, compre-nos livros. Veio a resposta em forma de esmola. Pensamento e estratégia? Nada, além de tristonhas declarações. Resta-me acreditar que o gesto dos editores venha a dar árvore frondosa, capaz de produzir fruto e sombra, bonsai que fosse, dos de tratar em casa. Não sei, cheira-me que. Quero sempre muito à volta do 25 de Abril.

Santa Bárbara, Lisboa, sábado, 25 Abril

As voltas que as coisas dão sobre si são revoluções. Em pequeno caderno laranja de cantos aparados, mas ao formato, o mano enorme António [Gonçalves] responde ao «Navalha no olho» ilustrando-o e manuscrevendo-o. Fragmentos de carne pontuam doravante as palavras, revivas por mão amiga e leitora as ter passado a tinta, negra de tão sanguínea. O gesto contamina o céu e a terra, as nuvens transfiguram-se em corpos que ficam no passar, o alcatrão despe-se para deixar que o chão mostre os seus castanhos pisados. O corpo quedo locomove-se.

Santa Bárbara, Lisboa, domingo, 26 Abril

Não vou mentir e dizer que foi de súbito, que nem trovoada tropical. Ainda assim, bateu esta morte do João [de Azevedo], com as cores vivas a esbaterem-se e os crocodilos a mergulharem para esconder a dor nas águas primordiais. O João conversava o mundo. Desfez fronteiras por causa de causas e arranjou maneira de prolongar vida fora certas experiências dos dias em que as utopias se cultivavam com enxada. Terras muitas e céus variados, viagens de quem lê. Aprendi mais África nas intermináveis libações, com o que o negro continente contém de Europa, de vontades transviadas e mitos cegos, surdos e mudos. Mas outros animais e outras paragens vinham à beira da tela para desaguar, para desovar, o crocodilo antes dos outros, a fazer-se senhor de erotismos e mortes de ver ao pé (exemplo algures na página). Um homem contém um mundo, mas o João fez-se antena de mundos, convocou outras gentes, das sementes e das palavras, acreditando. Este homem trazia consigo sempre outros. E um enorme sorriso respirado, de ânsias e paisagens. Um homem assim morre menos. Vou acreditar que esta seja ausência breve, o tempo de um relatório e poucas contas.

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