Não há alternativa!

[dropcap]H[/dropcap]á 46 anos o povo português descobriu o significado de uma palavra, de uma ideia, de um conceito que, em toda a sua glória, constituiu o principal contributo de uma revolução: Liberdade.

Como palavra, é algo ainda confuso, escondido atrás de outras palavras, pouco rigorosa, sujeita a numerosas interpretações. Como ideia, algo ainda perigoso porque sujeita a abusos, deturpações e mesmo apropriações por parte de quem antes exercia o poder e a odiava, embora nenhum pejo tivesse em dela se servir, principalmente para a destruir, anular ou, mais prosaicamente, colocar ao seu serviço. Como conceito, já a coisa pia mais fino, porque conceptualizar implica definir, isto é, traçar os limites. E, neste caso, traçar limites significa, tal como a regra de ouro, compreender que a minha liberdade termina onde começa a liberdade do outro. Ora se isto não é, para alguns, fácil de entender, mais ainda se revela difícil de praticar.

Não passa, obviamente, pelo exercício da liberdade acabar com ela. Só que este óbvio hoje não é tão óbvio quanto isso. Desde os anos 80 que a liberdade, dos mercados por exemplo, se transformou em libertinagem ao serviço do capitalismo financeiro que usou e abusou a seu bel-prazer da falta de regulação e, nesse movimento, provocou crises atrás de crises, nas quais os grandes prejudicados são sempre os que constituem a grande massa que paga impostos, a saber, os mais pobres.

As bolsas, os bancos com os seus criminosos produtos financeiros, com as suas jogadas de bastidores, quase sempre com o beneplácito dos políticos (como foi no caso do vergonhoso Tratado de Lisboa), transformaram o processo de construção de uma sociedade mais justa, mais igualitária e mais democrática, num sonho que hoje nos parece inalcançável. O mercado rex devorou e devora este e outros sonhos, entre os quais o da basilar dignidade humana. Assistimos, até neste momento de crise sanitária, à erupção de vozes que advogam o sacrifício da vida em nome da economia para alguns, insistindo na necessidade do crescimento imparável (não do desenvolvimento harmonioso) como se tal fosse fundamental e incontornável.

Por esse crescimento somos capazes de sacrificar vidas humanas, o planeta e, no limite, a própria sobrevivência da espécie.

A libertinagem económica tem simplesmente a ver com a liberdade do mais forte devorar o mais fraco, desumanizá-lo, fazer o indivíduo sujeito do lucro, roubando-lhe assim a possibilidade de uma vida realmente livre, em que cada um à partida teria as mesmas possibilidades de ascensão social. A meritocracia esfumou-se no seio da espertalhice, da sacanagem institucionalizada como se fosse assim e assim não pudesse deixar de ser. É o que foi crismado em TINA (there is no alternative), fundamentado pelas teorias dos Fukuyama de má memória e dos boys de Chicago, apoiantes de ditaduras onde o mercado só para alguns floresce, empestando o mundo com o seu fedor de plantas pútridas.

Assim, aos poucos, assistimos ao murchar das democracias, à sua irrelevância política, à constatação de que este género de capitalismo pode perfeitamente sobreviver e progredir sem elas ou apesar delas. 46 anos depois do 25 de Abril não haverá grande motivação para festejar, sim para resistir. Mas como? Como suster a vaga de fundo que um pouco por todo o lado se levanta e nos faz ver e prever um caminho sinistro, que os tolos se apressam a palmilhar e aplaudir, sem pensar duas vezes, sem leituras da História ou uma reflexão sóbria sobre os interesses que sem pudor se levantam para nos fazer regressar a valores do passado, desta vez alimentados por uma tecnologia que não controlamos e que, pelo contrário, cada vez mais controla todos os aspectos da nossa existência.

Alguns, enojados com o espectáculo do mundo, prescrevem o distanciamento, o isolamento, num movimento comparável aos ditames dos homens que viveram a decadência do império romano. Se não os podes combater, afasta-te deles; vive a tua vida com os que te são queridos, alheia-te do mundo e das coisas, do consumismo desenfreado, numa busca desesperada pela simplicidade. Este poderá ser um caminho mas que antevejo difícil de realizar.

Outros, de máscara, refugiados no anonimato, propõem-nos a revelação da verdade ou das verdades. Mas, num mundo intoxicado de informação, assente na libertinagem da opinião, é difícil distinguir onde pára realmente essa verdade e o combate acaba por se transformar em mais ruído, até porque é cada vez mais complicado e raro existirem instituições capazes de fazer valer a justiça e a equidade. Ou seja, o sistema está construído de modo a tudo absorver, incluindo a mentira descarada por parte daqueles que era suposto serem um esteio de veracidade.

46 anos depois da emergência do sonho, damos por nós às portas de um pesadelo. Mas é por isso mesmo que importa recordar Abril, de onde vínhamos e para onde queríamos ir. Importa não desistir. Importa resistir. Importa, apesar de tudo e contra todos, manter o sonho vivo. Sabemo-lo frágil. Sabemo-lo improvável. No limite, não importa perder a batalha, ser destruído nesta guerra. Importa saber que, apesar de prescindir de aparentes recompensas, só interessa a vida que se desenrola mais além do lucro, dos interesses mesquinhos e do exercício egoísta da maldade. Importa perceber e fazer perceber que o destino do outro ser humano está intimamente ligado ao meu. Que o século XXI será solidário. Ou não será.
25 DE ABRIL SEMPRE! Até porque não há alternativa.

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