Espíritos & Caganitas

[dropcap]A[/dropcap]quela frase chavão, que fazia a felicidade dos tradicionalistas: “É reconfortante saber que os mortos zelam pelos vivos!”, hoje, só causará desconforto, porque ecoa esvaziada de qualquer sentido, oportunidade, ou, imagine-se, de corpo.

Os registos de mortes dispararam de 30 mil para 40 mil nos Estados Unidos, em apenas três dias. Mais do que se conta por vítimas diárias em muitas guerras. Pura falência dos zeladores. E que consolo traz que um zelador seja um furado coador?

A associação de médicos tradicionais moçambicanos, a Ametramo, desta vez reconheceu que não tem receitas nem curas para oferecer, que os “espíritos” calaram sobre quaisquer terapias para a maleita. Demonstrou-se: é o corona à prova de espírito.

Gostei da atitude, da honestidade – a associação não pretende ludibriar ninguém. Por outro lado, a impotência admitida reduz muito o alcance dos espíritos.

Será uma questão de escala – afinal, para lá do umbral, os espíritos só conhecem o mesmo que viam enquanto vivos, sem uma mirada telescópica para o macro ou o micro? É pouco, e aí, atesta-se que é preciso acreditar maningue para se divisar a causalidade na acção dos mortos sobre os vivos.

Abre-se definitivamente a hipótese de os espíritos corresponderem ao efeito-placebo, na farmacologia convencional.

Não estou a ser sarcástico, acho apenas que este limite confessado devia fazer-nos reflectir sobre as bases e os dogmas dalgumas tradições terapêuticas.

Não sou despido de laivos de espiritualidade, acredito noutros “níveis da existência”, na multiplicidade de mundos e dimensões, acontece, contudo, que muitas das lentes tradicionais para percepcionar essas outras modalidades da existência me parecem redutoras, aquém das complexidades com que a vida nos interpela.

Ou a realidade dos espíritos é apenas mistérica, não sendo uma manifestação da/na natureza, como a dos vírus? Ó ironia, ainda por cima o corona, não sendo sequer um ser vivo, está “suspenso” entre dimensões – como os espíritos. Não lemos todos que o coronavírus é pouco mais do que um pacote de material genético envolvido por uma casca de proteína, com um milésimo da largura de uma pestana, e leva uma existência semelhante à de um morto-vivo, de tal modo que só com reservas se considera um organismo vivo?

Bom, uma boa notícia com duplicidade de leitura: o corona, como Deus, não descrimina, embora tenda a ceifar mais os pobres. Nisto, é vicioso.

Entretanto, lembrei-me de elaborar algumas explicações míticas para vitaminar a gaguez de espírito que tomou o Presidente dos Estados Unidos. Não poupemos esforços, ensaiemos algumas narrativas que possam auxiliar a dobrar o desnorte do ocupante da Casa Branca. Ocorreram-me estas; a primeira:

O freio, na língua de Deus, ficou cativo da palavra «desalfandegar». Mais adesivo que velcro, o vocábulo não despegava.

Qual a origem do termo? Reuniu-se uma comissão para averiguar o mal, que já inchava nas gengivas de Deus. Sucederam-se meses de acaloradas discussões, enquanto o misterioso desalfandegamento se deslocou, indo implantar-se no palato, num enjoo que ameaçava tirar a Deus o gosto com que saboreava a gelatina, a sua sobremesa favorita.

Então Deus criou o mundo e repartiu-o em países para que houvesse as alfândegas e ficassem afadigadas aquelas cinco sílabas, tão difíceis de extirpar de sua santa boca.

Calcule-se, basta juntar dois mais dois, o que irritaria no palácio celestial esta mania recente dos povos não quererem fronteiras entre si. É como se um pequeno gânglio ganhasse de novo asas. Ponderou aí Deus, que não chupava nem as ideias de fora nem a emigração, em criar o coronavírus para dificultar e re-burocratizar o trânsito entre as fronteiras: E FEZ-SE VÍRUS!

A segunda:
Do mamilo de Eva saíam gotas de mercúrio, em vez de leite. Adão, que andava na transumância, nunca teve qualquer palavra sobre isto, e Eva era cortejada por muitos. Porque O Diabo, que andava por ali de tez amarelada, ludibriou os homens, fazendo-os apostar que ao bebé que mamasse em tal iguaria cresceria uma pila de prata e sobressaíria pela pele alaranjada, vindo no futuro a ser nomeado presidente do Clube dos Procrastinadores.

Por outro lado, era tal o valor da aposta que muitas crianças chegadas de todas as coordenadas iam mamar na teta de Eva.
Foi grande a surpresa com o envenenamento geral.
Compreenda-se: o mercúrio não era americano.
A terceira:

Deus andava com espirros irreprimíveis. O seu médico-barbeiro chamava-lhe A doença da China, mas não sabia dizer porquê.
Alguém lhe afiançou, isso só passa com a saliva dos pangolins. Isto, disse-lhe um profeta, pois os pangolins, na altura, ainda não haviam sido criados.

Ficou logo motivado para criar o pangolim. Zás, catrapás. Contudo, Deus achou a criatura horrível. Resolveu simplificar, criou o morcego. Aí foi a a mulher de Deus, antes de lhe provar a saliva, que foi tomada pelo asco. Então Deus criou o cão, uma criatura, digamos, com outro polimento. E a mulher de Deus gostou tanto que Deus criou os homens para darem à socapa umas caneladas e berlaitadas aos cães. Com uma vantagem suplementar: como era gostosa a saliva dos cães.

Ainda hoje Deus se péla pela saliva dos cães. Usa-a na doçaria. Não se delicia também Allah com a baba de camelo?

Mas um dia, Deus viu que um homem se batia com mais gosto à baba do pangolim do que ele à do cão. Ciumento, resolveu inocular no bicho algo que contaminasse o homem e o deixasse com os olhos em bico.
Porém, nunca disse uma palavra sobre como lhe haviam passado os espirros.
La dernière:

O esparvoado filho de Deus não conseguia compreender o significado da palavra «amenidade» – não lhe entrava na pinha. Deus então criou o Corona. E disse-lhe: Estás a ver esta coisa insignificante? É uma caganita de ácaro, não é, perguntou-lhe o pimpolho. Vais ver a importância duma caganita, assegurou-lhe o pai. E, vai daí, criou o resto do mundo.

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