Do retiro

27/03/2020

[dropcap]O[/dropcap] gladiador que vai morrer saúda o Corona-César com um manguito porque também ele joga e julga e ri-se às gargalhadas dos Césares e dos que vão cuspir sobre o seu cadáver: saudades que me dão dos pépluns, a meio da noite, depois de um mosquito ter rompido de auriga a rede para me vir ferrar, quebrando-me o sono.

Sentado de perna aberta na preia-mar, cogito em como o relativo jeito com que me sirvo da Parker não me torna destro no manejo do sílex e do carbono – ou seja, convém pouco que uma regressão civilizatória exceda os limites do tolerável.

Ainda que a semana tenha sido deprimente e sinais apontem para aí, como o Bolso-onagro ter decretado que de entre as aglomerações desculpáveis, porque segundo ele essenciais, está a ida às salas de loto. É usar a roleta russa contra a população, ou idêntico a engolir um moscardo para o ver sair incólume, o seu verde iridescente e impoluto, pelo rabo, como se mais não fossemos – aos olhos da aleatoriedade do poder que ambos (insecto e Bolso) representam – do que o Homem Invisível.

Entretanto, corroborando o “chefe”, o presidente do Banco do Brasil afirmou que “a vida não tem valor infinito“. Tem sim. Mais que não seja porque isso abriria o campo à discriminação, que é absolutamente destituída de siso.

28/03/20

Adormeci ontem a ver The Banker, um filme de George Nolfi, onde Bernard, um miúdo negro com queda para os números e os negócios se torna um empresário de tal sucesso que, contornando as omissões das leis, se tornou o primeiro negro dono de um banco no Texas, em 1965, ainda que a coberto de um testa-de-ferro – branco.

Só três anos depois dele e do sócio, Joe (um brilhante Samuel L. Jackson, como aliás, sempre) terem sido denunciados e condenados a prisão por puro racismo, é que se decretou finalmente uma lei nos States que proibia a recusa de vender propriedades por razões de raça, religião ou género.

Cansa a desmedida da irracionalidade humana, mas a tragédia que o filme projecta é verificarmos como cinquenta anos depois não saímos do natural ressentimento e das clivagens entre raças. Como diz Joe a Bernard, que neste aspecto lhe parece ingénuo: «eu consigo ser amigo de brancos, “mas há sempre um extra”». A inversa, nesta terra em que habito, é igualmente verdadeira: eu consigo ser amigo de negros, “mas há sempre um extra” – esgotada a motivação de um “interesse” qualquer ou a “vantagem” passageira que eu possa oferecer ao outro, a amizade volatiza-se, de repente.

E agora há um “novo extra” associado à ignorância que rege a xenofobia: há quinze dias uns miúdos numa escola de primeiro ciclo fugiram de mim chamando-me “coronavírus!”. Hoje uma amiga contou-me como ontem, também num bairro popular de Maputo, o Alto Maé, a apontaram chamando-lhe “coronavírus!” e sentiu uma certa agressividade no ar. Que sejam casos esporádicos! Talvez esta tensão não decorra de um racismo de pele, mas de haver um entendimento popular de que seja esta doença uma enfermidade trazida pelos “ricos”, aqueles que têm possibilidade de viajar – aqueles que noutra crise foram apelidados de “chupa-sangue”.

29/03/20

De comum, tropeço em certas palavras a que sou alérgico, dado que por mais que as conheça não as uso nunca. Como “escopo”: o olhar é o escopo da luz, a larva é o escopo da borboleta, o seu sorriso com covinhas é um escopo de vagina, da brama do mar ao trilar das estrelas para além deste alpendre sobre o jardim tudo é escopo de um deus que se retira; o Índico tem cada vez menos peixes, lastimam-se os pescadores, que face às marés vivas olham para a faina como um escopo de ataúde, etc., etc. Não me escorrega facilmente pelo estreito, o vocábulo, nem em “escopo”.

30/03/20

Um belíssimo livro que devia ser obrigatório traduzir para português, Em Defesa do Fervor, do polaco Adam Zagajewski, que arranjei na tradução espanhola: uma defesa da poesia em tempos de cinismo e um hábil resgate do Belo e do Sublime, que Zagajewski leva a cabo sem padecer de qualquer recaída no idealismo.

Um excerto: «A poesia e a dúvida necessitam uma da outra, coexistem como o carvalho e a hera, o cachorro e o gato. Mas a sua união não é harmónica nem simétrica. A poesia precisa de duvidar da poesia. Graças à dúvida a poesia é purificada da insinceridade retórica, da verborreia e falsidade, da sua fixação prematura e da euforia vazia (não a verdadeira). Sem o olhar severo da dúvida, a poesia – especialmente no nosso tempo sombrio – poderia degenerar numa canção sentimental, num cântico exaltado embora estulto ou num louvor impensado de qualquer coisa inorgânica no mundo»

31/03/20

Um pato rasa o telhado da casa, a grasnar. Há uma hora andaram por lá os macacos. A lagartixa trepa pela parede amarela. A brisa leva o espanta-espíritos a responder aos pássaros. Em fundo o mar nunca se engasga, como um piano de manivela.

Estou embutido na natureza, esta benigna, já a do vírus é da predação, como a nossa. Mas por enquanto sinto-me distante das crónicas de desmoronamento. Bebo o terceiro chá da manhã, resolvi fazer uma dieta-intermitente e passo catorze horas sem levar uma bucha à boca, a ver se estou mais magro seis ou sete quilos quando o bicho me apanhar porque devido ao peso sinto os pulmões opresos.

Hoje sonhei. No meu sonho, bizarro, aparecia uma miúda de carrapito e aspecto modesto; o aprumo e a procissão, merda, merda, caiavam-na por dentro, como se lhe forrassem de papel de parede o verso da pele.
Espreito as notícias, tantos motivos para execrar o mundo. Mas de duas coisas sei: que nunca se deve apostar contra o mistério e que nunca me conseguirão inflamar o ódio. Tenho esta fraqueza.

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