Stephen Morgan, futuro reitor da Universidade de São José: 
“Somos uma instituição de confiança”

Nomeado para reitor da Universidade de São José (USJ), o diácono galês Stephen Morgan antevê desafios no rescaldo do novo coronavírus. Quer ouvir antes de traçar objectivos específicos, mas salienta o papel da USJ como ponte entre os mundos chinês e lusófono, e defende que a liberdade de expressão acarreta responsabilidades

 

[dropcap]C[/dropcap]omo se sente depois de ter sido nomeado como reitor?

Há dois sentimentos avassaladores. Um é um grande sentido de honra, e o outro uma sensação de gratidão à Fundação Católica por me nomear e gratidão ao meu predecessor, o padre Peter Stilwell, que tem sido notavelmente eficiente e um firme reitor da universidade. Estou um pouco intimidado pelo desafio, mas isso é em parte aliviado pelo facto de a equipa na universidade ser de primeira classe. São pessoas boas e com um sentido de propósito.

Como é que a fé despertou em si?

Não tenho consciência de nunca ter tido um sentido de confiança em Deus. Pensamos frequentemente em fé enquanto ascensão intelectual a uma série de proposições, e é isso, mas é mais, é um sentimento de confiança. Tenho muita sorte de vir de uma família amorosa e estável. Era um ambiente acolhedor, onde a fé era tida por garantida. Não era algo que uma pessoa se sentisse forçada a fazer – tenho dois irmãos que, tanto quanto sei, não têm qualquer crença religiosa explícita, mas eu cresci com isso. Sou o filho mais velho, e os filhos mais velhos tendem a ser bastante respeitadores e obedientes. Era muito chegado à minha avó, uma mulher católica muito devota. Não fui criado católico, mas protestante, e era muito próximo da minha avó. Quando ficava com ela íamos juntos à missa. Tornou-se uma coisa natural. Mas não houve um momento em que subitamente algo me transformou em crente.

Sobre o seu novo papel, o que imagina para a instituição?

A universidade tem um número de aspectos que quando colocados em conjunto são uma proposta interessante. Somos a única universidade Católica da China, e isso significa que temos uma responsabilidade para com Macau e a China no sentido de sermos um local de testemunho de uma série de valores que são adquiridos na nossa fé. Mas que podemos reconhecer vastamente como valores humanos sobre a importância da dignidade da pessoa humana e das responsabilidades desta em relação à família e à sociedade. Somos também uma comunidade muito internacional, com mais de 40 nacionalidades no corpo estudantil da universidade, esse lugar de diálogo intercultural é muito importante, abre a visão de uma pessoa. Em terceiro, somos uma comunidade que tenta aprender e ensinar e trabalhar numa língua que não é primeira língua de ninguém na universidade. Temos muito poucos falantes de inglês como primeira língua. Penso que é uma combinação atractiva.

Tem objectivos específicos que queira atingir?

Acho que é demasiado cedo para dizer. Quero que a Universidade viva, prospere, cresça, seja consciente de, e apreciada pelo seu serviço à comunidade de Macau. À comunidade Católica de Macau em primeira instância, mas também de forma mais vasta. Penso que está na natureza do que uma universidade Católica deve ser: nascida do coração da Igreja, mas ao serviço da sociedade. Acho que antes de começar a traçar objectivos concretos tenho de ouvir muito. Ouvir a universidade, a Igreja, o Governo e a comunidade de Macau. Foi-me dito uma vez que temos uma boca e dois ouvidos, e que o melhor é usá-los nessa proporção.

Quais os principais desafios que espera encontrar?

Teria tido uma lista diferente se me tivesse feito esta pergunta há seis meses, apesar de nessa altura não ter expectativa de ser reitor da universidade. Acho que no rescaldo do coronavírus o primeiro desafio que a universidade e toda a Macau terá de enfrentar é como voltar à vida normal. E será a vida normal depois do coronavírus igual ao que era antes? Inevitavelmente, não. Uma das coisas que me impressiona mais no novo Governo de Macau é como cuidadosamente, decididamente e sabiamente actuou. Não pode ter sido fácil lidar com isso. (…) Acho que vai afectar, por exemplo, o recrutamento internacional. A probabilidade de os estudantes virem este ano vai descer, isso pode fazer parte do desafio. Sinto que o Governo de Macau vai responder ao período pós-vírus com o mesmo grau de certeza com que actuou durante esta fase. São muito sérios em relação à diversificação da economia e a educação superior tem um papel a desempenhar nisso. Penso que será um desafio para mim. Ponho isso quase acima de tudo o resto. Antes de isso estar na agenda havia todo o tipo de coisas, a maioria delas técnicas em relação ao funcionamento interno da Universidade, porque as decisões grandes e estratégicas, como a mudança para o Campus da Ilha Verde, por exemplo, foram parte do que o actual reitor atingiu (…).

O seu predecessor a dada altura fechou cerca de 30 cursos. De momento, como estão as finanças da Universidade?

Estáveis. Acho que [foi] uma das maiores conquistas na sua vida na universidade. Não somos uma universidade com enormes reservas, por isso as decisões sempre tiveram de ser feitas com um olhar cuidadoso em relação ao impacto financeiro. Em alguns aspectos tive sorte, com o meu tempo em Hong Kong e depois os 14 anos na diocese. O trabalho que fiz aí foi de director operacional e por isso tinha uma diocese com 73 escolas com 4500 professores, 27 mil crianças e 160 igrejas. Por isso, gestão financeira é algo que passei muito tempo da minha vida a fazer, estou confortável nesse mundo. O facto de o Padre Peter ter conseguido estabilizar e melhorar as finanças da universidade de tal forma que nos últimos quatro anos teve excedente é extraordinário, tendo em conta que é um académico teólogo sem experiência nesse mundo. Mas as finanças estão estáveis. A primeira tarefa nesse processo é demonstrar às pessoas o valor daquilo que temos a oferecer. E se fizermos isso de forma eficiente, acho que a situação financeira ao longo dos próximos anos vai gradualmente melhorar. Nunca vamos estar na situação das universidades de financiamento público, isso está na natureza de ser uma universidade privada.

Um estudo da rede “Scholars at Risk” do ano passado concluiu que há uma erosão na autonomia das universidades em Macau. Como é que esta pressão na liberdade académica é sentida na USJ?

Não tenho qualquer sensação de pressão na liberdade académica. Não estou ciente de que qualquer dos meus colegas sinta que esteja sob maior pressão do que poderia estar se ensinasse em Portugal ou no Reino Unido. Eu, certamente, não sinto. Fiz algumas conferências aqui, uma delas co-organizada com a Renmin University of China, e não senti qualquer sugestão de que tinha de ter cuidado com o que dissesse. Há algo de que talvez tenhamos perdido a visão, sob a influência do entendimento americano da liberdade de expressão, mas o direito a exprimir opiniões vem com uma responsabilidade. A responsabilidade dessas opiniões. A sensação que tenho, do que vi da nossa interação com o Governo de Macau, não é de estar sob pressão governamental para ser cuidadosos com o que dizemos e fazemos, de todo. É algo à volta de responsabilidade e carinho da parte deles. Claramente, quando estão a gastar o seu próprio dinheiro têm o direito de decidir para onde esse dinheiro vai. Uma vantagem de ser uma universidade privada é que não estamos tão dependentes disso. Vi o relatório do Scholars at Risk, e outro da Human Rights Watch. É muito interessante, mas não é o que se sente em Macau.

Qual a sua posição em relação a professores da universidade expressarem a sua opinião política pessoal em público ou nos meios de comunicação?

Depende da forma como a pessoa o faz. Estou ciente que há alguns anos, um professor expressou opiniões de uma forma que a universidade teve de lhe dizer adeus. Esta é a interacção entre direitos e responsabilidades. Tivemos um grande caso de tribunal no Reino Unido há alguns anos, sobre a responsabilidade da Igreja e as acções dos padres. Um dos juízes colocou a situação da seguinte forma: se a Igreja puser alguém num púlpito, tem responsabilidade pelo que a pessoa diz, e essa pessoa tem responsabilidade para com a instituição, para garantir que não abusam da sua posição. As pessoas não costumam pedir a opinião do Stephen Morgan porque é o Stephen Morgan, pedem-me a minha opinião porque sou o director de uma faculdade. Quando expresso as minhas opiniões tenho de ter um sentido de responsabilidade por essa razão. Penso que é algo difícil de assimilar para europeus e norte-americanos, porque estamos muito habituados a um sentido de liberdade de expressão que é quase ao nível da permissão completa, sem consideração por consequências do que se diz. Para além disso, temos de reconhecer que enquanto estrangeiros temos o dever de compreender e respeitar a comunidade onde vivemos. Trazer as nossas próprias noções de como a sociedade deve funcionar e ser governada, e assumir que são normativas para toda a gente parece-me neocolonialismo.

Quais as expectativas de a USJ receber estudantes da China Continental?

Não sabemos porque é que não podemos receber estudantes da China Continental. Mas uma das coisas que aprendi quando estive nesta parte do mundo, há 25 ou mais anos, é que o importante é construir relações de confiança. Não se pode forçar a velocidade a que se constrói uma relação de confiança. Só se pode ganhar a confiança de alguém depois de um período de tempo em que há exposição mútua. Estive em Pequim em Janeiro com o reitor e um dos nossos vice-reitores e fomos recebidos aberta e graciosamente pelo United Front Work Department e pelos presidente e vice-presidente da Conferência Episcopal Católica. Vamos demonstrar que somos uma instituição em que se pode confiar, e com tempo isso pode abrir a nossa universidade a receber estudantes da China Continental. Mas a estratégia da universidade não depende disso.

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