A banhos

[dropcap]E[/dropcap]stou de folga. No momento em que assinalo meia quarentena cumprida, percebo-me cansada. A descrição do parto da oitava filha de Lu Shangguan e do primeiro de uma jovem mula ainda está por acabar de ler. O Mo Yan merece mais. O espanhol “Plataforma” ainda não está visto. Tentei ver “Freud”, uma ´série que ansiava por ser entusiasta do senhor ,- que com certeza teria uma explicação para o fenómeno actual da corrida ao papel higiénico – e acabei desiludida. Tenho trabalhado o que posso e feito umas coisas a mais. Ainda não tive pausas. É hoje.

Enchi a banheira e esperei ver a espuma escorrer um bocadinho para fora até fechar a água. Recordei o peso de uma outra espuma, espessa e aromática, de um banho em Istambul, e chorei os céus e a terra fechados. Um dia, se o mundo ainda rodar, vou-lhe dar três voltas. Pelo meio, vou repetir a espuma dos Hamam e fazer um pirete à espuma dos dias, com todo o respeito pelo Boris Vian.

Ainda era dia quando mergulhei. Por vezes faço-o, mas mais lá para a madrugada. É um entretém em que deposito a esperança num sono rápido. Hoje não. Vesti uma túnica chinesa e lamentei não ter uma cabaia. Ainda assim consegui ter o gosto de apertar aqueles dois botões, redondos e delicados, do lado esquerdo da gola direitinha que molda o pescoço.

Vi e segui escrupulosamente o vídeo da Rita. Anunciado como uma série de exercícios para os “velhotes”, diz ela. Pareceu-me que à semelhança da quarentena, devia ser uma rotina obrigatória para todos. Mais logo vou enviá-lo aos meus pais e amigos. Acho que que lhes vai fazer bem. A Rita faz bem às pessoas.
A Sara continua preocupada e a Marta desiludida. O João, a Luana e o Pedro contam-me histórias. A Natacha corre atrás do petiz que, felizmente alheio, não se coíbe de explorações.

Quando o telefone toca

No outro dia ligaram-me. “Boa tarde, sou da polícia e queria dizer-lhe que não pode sair do quarto”, ouvi num inglês perfeito. “Não estou a contar fazê-lo” repliquei só para não ficar calada. Seria óbvio que a viabilidade de sair era nula. Aliás, se punha a cabeça de fora para conversar com esta minha boa vizinhança, alertavam-me logo que tinha ultrapassado a linha que marca a porta e, por conseguinte, a minha fronteira. Nunca gostei de fronteiras. “Muito bem. Pode dizer-me o seu nome?”, continuou a voz, penso que para confirmar que eu sabia quem era e que correspondia ao nome no papel que imagino que teria nas mãos com a minha identificação. Respondi. “Obrigada, boa noite”, rematámos.

Hoje está nevoeiro, mas o final do dia é atropelado pelo sol.
Volto segunda-feira, já apostada numa recta final.

Bom fim-de-semana

Macau, 26 de Março de 2020

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