Cuidar

I don’t wanna live like this
But I don’t wanna die
Harmony Hall,Vampire Weekend

 

[dropcap]E[/dropcap]ste cronista não é melhor do que ninguém, amigos, e está também em isolamento voluntário. Vê estes dias estranhos pela janela e o seu lado mais misantropo está satisfeito com esta nova ordem mundial que aconselha distanciamento e o mínimo essencial de interacção humana. Para quem vos escreve estes quase que deveriam ser valores civilizacionais.

Mas vou suspender a ironia porque estes dias são sérios. Há gente que sofre, que morre. Nas ruas sente-se um ténue odor a medo, que sendo ainda suave existe. Mas há também este fenómeno surpreendente para um hobbesiano encartado como eu: as manifestações de humanidade e ajuda sucedem-se. Umas mais inócuas do que outras, umas mesmo ridículas e inúteis; mas estão lá e confundem os pessimistas antropológicos como este que se assina. Será que os flagelos globais poderão reverter o estado natural da humanidade que Hobbes defendeu?

Até agora, e olhando à minha volta, estou tentado a dizer que sim. É verdade que existem pessoas que lutam por papel higiénico mas outras há que se oferecem para ajudar quem mais precisa. E quem mais precisa está sempre ao nosso lado, conhecido ou desconhecido.

Um dos livros que me tem ocupado nestes dias é The Better Angels Of Our Nature, de Steven Pinker. Trata-se de um excelente ensaio onde Pinker tenta provar que apesar de nós a violência humana tem diminuído com o avançar da civilização. É bastante difícil discordar das suas conclusões, apesar das barbaridades sortidas a que assistimos todos os dias. É um livro que de certa forma encaixa no optimismo que nos defende da pandemia.

De forma que por agora prefiro viver nesta ilusão de que as pessoas são boas. Mesmo acreditando que a natureza humana é auto-imune à bondade em permanência e que uma vez regressada a normalidade, o verdadeiro rosto da humanidade voltará a surgir por detrás da máscara sanitária.

Escrevi há alguns meses um texto para um catálogo de uma exposição de pintura de Patrícia de Heredia. Muito antes destes dias, o tema era “cuidar”. Arrisco a auto-citação, com a vossa indulgência: “Cuidar é fazer do amor uma flor comum e rara ao mesmo tempo”. Talvez seja esta a estação em que esta flor deva ser colhida.

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