A nova era ptolomaica

[dropcap]É[/dropcap] provável que estas duas notícias de que vos falarei agora apenas pareçam ter ligação para este cronista. Mas fiquem comigo mais um pouco, amigos.

Primeiro, foi a morte de George Coyne, um sacerdote jesuíta que era astrónomo no Vaticano. Durante a sua vida provou que a Fé e Ciência não são de todo incompatíveis e defendeu Galileu e Darwin contra as opiniões mais reaccionárias da Igreja. O seu olhar, por convicção e vocação, era do tamanho do universo e nesse olhar todos cabiam.

A outra notícia seria um fait-divers mas teve direito a parangonas e, como agora se diz, tornou-se viral: um rapazinho teve um acto de fair play e lealdade durante um jogo de futsal, corrigindo o árbitro sobre uma infracção que iria beneficiar de maneira importante a sua própria equipa. Ora eu até acredito que isto aconteça todos os dias e em vários lugares – é o facto de nos surpreender e comover que me espanta e diz bastante daquilo em que nos tornamos.

Ou talvez tenha sempre sido assim, não sei. O que sei é que a ortodoxia vigente neste lado do globo é uma espécie de uma visão ptolomaica dos afectos e do indivíduo – uma metáfora só para aproveitar o facto de ter George Coyne a dar brilho a estas pobres linhas. O Outro foi abandonado pela visão de que nós – eu – somos o centro do universo e que tudo orbita à nossa volta. Há pessoas assim e eu conheço algumas. Mas que isto se torne numa constatação global é que me entristece. O postulado parece ser: o centro sou eu . Não só das relações como de toda a Humanidade. Mesmo que não seja sobre mim é sempre sobre mim.

Nota-se facilmente por todo o lado. Nas redes sociais – essa fiel depositária de todas as qualidades e defeitos da natureza humana – a lupa é implacável e facilmente se chega lá. Desde os obituários de famosos que por lá surgem, e que em vez de prestar tributo aproveita-se para falar de um episódio em que se conheceu o defunto, até à mais arrogante e irritante formulação do “Quem me conhece sabe”. A sério? E então para onde vamos nós, os que não conhecem nem querem conhecer? Quem assim escreve pede uma atenção – pior: pensa que lhe está devida – que ninguém quer dar.

Podiam apenas ser meras irritações mas olhando para os sinais, que já têm décadas, receio que esta atitude esteja para ficar. Mesmo os movimentos colectivos que se dirigem ao outro refugiam-se muitas vezes no cinzento do anonimato e no conforto da sala. Como há medo ou incómodo de enfrentar um rosto dá-se a ilusão de que a solidariedade é real e próxima. A cultura confessional que Robert Hughes diagnosticou nos anos 90 – uma outra forma de dizer cultura de vitimização – terá criado também este monstro paradoxal (outro, mais conhecido, é o do politicamente correcto).

Não venho aqui apresentar soluções, amigos. Não sei, não posso. Registo apenas sinais que fazem desta crónica um lamento mais do que outra coisa. Mas fico-me pelos pequenos gestos como o do rapazinho. Ou a grandeza do homem que defendeu que somos nós que orbitamos algo maior, mesmo contra muito do que lhe disseram para pensar. Enquanto houver este legado nos nossos dias, a nossa viagem finita há-de ser sempre um pouco mais leve. E isso é melhor do que nada. Melhor do que nós.

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