Dicionário das palavras difíceis

[dropcap]P[/dropcap]ensar como as palavras são difíceis e no mesmo mecanismo reflexo ocultar as difíceis, de dizer. Simples e límpido.

Na infância, palavras difíceis, eram as desconhecidas a ver no dicionário. Mas não por serem duras ou por magoarem. Mudou quando crescemos. Agora, difíceis são as que custamos a dizer para fora desse limbo em que nos assolam de dentro. A construir ou a corroer. Ou as que abrem caminho na carne, sem anestesia, vindas de terra estranha.

O que procuro nas palavras que se acercam quando escrevo, senão pacificar o desconhecido, o conhecido, é talvez difícil de decifrar. Um mapa. Surpreender um novo ângulo que o simples pensar não teria abarcado. As palavras são exigentes. Não se resignam com imprecisões. Perguntam na sua afirmação se estão no lugar certo do sentir do pensar. Mas num grau de exigência tocado de humildade. Elas pedem licença para ficar e dispõem-se a deixar lugar vago a outras, se vieram inconvenientemente. Se nos entenderam mal. São educadas. De bom feitio. E no entanto capazes de cortar a respiração de tão incisivas quando tocam a pele.

A alma. Pergunto sempre, nesse caso, de que lado sem piedade saíram de mim. Quando as deixo aflorar o ecrã luminoso. Não posso deixar que me façam mal. As minhas, pelo menos. Hoje as palavras difíceis são as difíceis de escrever. As difíceis de pensar a dimensionar um julgamento sumário em si, e sobre quem, simplesmente pensadas, nos tornam.

Às vezes correr no dia e nas coisas feitas e a fazer somente para chegar à noite. Entrar, descansar nela, essa interna terra de ninguém. Intervalo na voragem até mesmo quando demasiado lenta, amadurecida e penosa, dos dias. Penso que desperdício correr. Penso que desperdício tanto do que faço e tanto do que haveria a fazer. Penso. Que desperdício tão grande viver a pensar em vez de pensar a viver. E outras contas coloridas.

Que faço aqui? Que caminho é este? Quando se sabe de antemão onde se vai terminar mas não como, e quando. Em pleno ou com a consciência pela metade. Serenamente ou em agonia. Comigo, com quem? A sós. Quase de certeza. Palavras a apagar. Coisas que não se devem dizer. Aprender a escrever silêncios. A viver palavras melhores – como? Mudá-las de lugar na casa do dicionário. Significados a dois, sinónimos a dois. Sentidos em grupo. Famílias de palavras com quem jantar à semana. Umas, que acariciem as outras.

Há coisas difíceis de fazer. Mas há coisas ainda mais difíceis. Não há maneira mais infalível de fazer as primeiras, do que temer as segundas, adiar, fugir até ao limite do possível e nesse momento fazer uma série infinita de coisas fáceis e, para adiar mais um pouco as mais difíceis de todas, fazer as simplesmente difíceis.

Tornadas, por magia da comparação, fáceis, afinal. Com a secreta satisfação de ver o que foi feito afinal. Mesmo por razões transversais. Mergulhar no covil de um monstro que se torna vizinho e cúmplice. Nunca se enfrenta serenamente um medo, senão em fuga de outra esquina atemorizante. Com as palavras, o mesmo.

A escrita não é uma actividade voluntária. Não acontece quando quero, pelo contrário acontece quando não quero, quando não posso. Percorrer estes ténues limites da vontade é como equacionar a fila da confissão. Fujo do que me persegue mergulhando nisso. Não quero escrever isto que me assola. Na verdade é um soluço ou um vómito súbito. Uma certa e secreta escrita. Depois, num miradouro sobre este espaço nu. E vamos a ver, e já somos nós. De lápis na mão, emprestado, azul.

Aquele Atlas, de países fora de moda. Sempre gostei de mapas de percorrer e sonhar. E tenho o oráculo. De Borges. Aquele livrinho de folhas finas e azuis em que nunca leio mais do que uma palavra, apontada cegamente. E quando aponto uma página vazia, penso: o presente não fala comigo, de momento e o futuro indisponível. Sempre fez sentido assim. Como em qualquer leitura profética, projctamos o que desejamos ler.

Assim, uma única palavra, sem os labirintos que a atiram para bifurcações naturais a qualquer linguagem. Explicando, confundindo. Mas entre os livros de mapas, gosto particularmente do dicionário. Essencial à leitura daqueles. De que servem os mapas sem palavras de ir, vir, gostar, sonhar, querer. De um nunca. Um de novo. Em cada entrada o mergulho a pique. As dicotiledóneas ou as diatomáceas, tão perto da dicotomia da disposição. A secura lisa da apresentação. A poética revelação das palavras bonitas, das comuns, surpreendentemente versáteis. As estranhas paisagens de desconhecido de umas e do reconhecido noutras.

E pensar que todos os livros e todas as conversas, de uma miríade de vidas cabem ali. Desarrumadas como quem acabou de se levantar de uma noite. Dissimuladas, na sua ordem alfabética.

Duas páginas em frente. Virar esquinas do grosso volume. Pejado de vida, mistério, sons abafados pela estridência de outros. Um mundo. Que sempre espreito com fascínio e terror. Quantas palavras por estrear…Um parque florestal pejado de seres vivos até à mais recôndita camada. Um dia de arrumações, reorganizar o dicionário. Arrancar as páginas cuidadosamente sem estragar a encadernação. Como cartas de Tarot dispostas sobre a mesa. Consultar o insólito e novo agrupar de impressões em soluções para a vida.

Respostas em jeito de amigas que não nos conhecem e quase acertam de tão longe. E com tanto ou tão pouco sentido, quanto a coerência se revelou incapaz de definir. Como uma outra poética, sem espartilho. Recortar e colar tudo de outro modo. Reorganizar sentidos. Palavras gastas com outras mais jovens. Talvez. Umas que não se conheçam, para ver. Deitar fora as que têm demasiado uso e me cansam. Já. Tempo, matéria, mental, ilusão. Que aluada sou neste perscrutar escuridão. Quando a hora é de quem dorme cedo ou tem compromissos para a noite e aqui, do lado de fora se gera a quietude que teima em não entrar. Olho sempre pela janela porque dela vem a noite e em mim ainda oscila este fundo interior. A querer sair e acalmar.

Há que sair deste fundo de mim. Unir com uma linha fina de lápis F, delicado, nas folhas do pesado livro, a palavra estranha da entrada x da página da esquerda, à palavra comum da entrada y da página da direita, num casamento desigual e ir daí por diante no universo que se esboça.

A pensar, exultante na perplexidade, que tudo está em tudo, escrito ali. Somente a precisar de arrumação. Como um destino. Que se quer ler nas estrelas. Mas é de escrever. Ou um Atlas. De que nos servem tantas terras desconhecidas, a que ambição desmesurada abrem território, penso. Há um mapa pessoal a desenhar. Uma soma de caminhos, um sistema vascular. Como um corpo e o único amado.

Subscrever
Notifique-me de
guest
0 Comentários
Inline Feedbacks
Ver todos os comentários