Da vida dos mundos

Foros da Fonte Seca, Redondo, 3 Janeiro

[dropcap]N[/dropcap]ão se encontram com facilidade dias de Inverno assim, plenos de uma luz que congela segundos e mundo, espalhando nitidez, tornando a matéria do mais real que se alcança. Pelo olhar, que na mão dói.

O Alentejo continua sendo habitat destes seres, mais vivos que a vida. Contenho algo do campo, mas na verdade só experimentei brincando a apanha da azeitona. E como deve doer! Quem teria, no contexto, este luxo de se afastar do inescapável para experimentar a intensidade de estar ali, de ser, tão só? Continua a chover fezes algures, mas o pulmão enchendo de ar frio e sol quase me faz esquecer a insídia.

Fui livre por horas, mas regressei aos manuscritos que devia ler com lápis de carpinteiro, rasgos ovais de vermelho entre a vista e o ouvido, no eixo dos sentidos. Lê-se com o corpo todo, estamos fartos de o saber.

Até sentados. Não tanto pelo fruto da época ser avaliações, maduras, histórias de adormecer e, portanto, dançar com os medos, mas por estar de futuro na mão, conto até treze os títulos da colecção de novela e romance. (Treze, esse querido doravante maldito número.) Primeira constatação: noto em cada título um esforço de pesquisa, de teste aos limites e convenções do modo de contar. Mas também encontro vontade de estender pano de fundo temático sobre o qual discorrem protagonistas de carne e osso e voz. Sendo que no protagonista se plasma, tantas vezes, o narrador e seus desdobramentos de fantasma. Segunda constatação: os autores da abysmo possuem inclinação para a trilogia, por fazer sentido ou em busca de múltiplos sentidos. A do Paulo [José Miranda] faz-se de mero substantivo, mas os três volumes recolheram-se em apenas um. O Valério [Romão] anunciou logo a abrir que vinha em busca de «Paternidades Falhadas».

Sendo que a do Luís [Carmelo] passa despercebida e apenas as ilustrações do Daniel [Lima] lhe conferem unidade. Não havendo duas, sem três, ei-la, a terceira constatação: o pórtico de ilustrações a sugerir ambientes tornou-se marca. E em alguns casos integrou-se que nem fibra na tessitura da obra.

A propósito e empurrando o triângulo, segue-se uma trilogia de mera coincidência e autores distintos. O Paulo e o Luís, mas também o recém-chegado Vasco [Gato], prosseguem, cada um a seu modo, investigação sobre a engrenagem da narrativa, interior e exterior, a construção de figuras à escala e para além dela, que incessantemente desenrolam ideias, que pintam sobre o tempo não tanto a paisagem, mas a vida.

CCB, Lisboa, 5 Janeiro

O Tejo continuará sempre a discorrer no seu afazer de horizonte, mas deixo de nele me poder fixar durante o «Obra Aberta». Regressámos ao recolhimento da sala Glicínia Quartim logo em edição de convidados abertos ao mundo, confirmando assim que as paredes podem pouco. Não se trata apenas de viagem, que quando acontece jamais se fica pelo apenas, mas de memória e infância. E por estes caminhos se perdem bem, tanto o Afonso de Melo como o Luís Cardoso, cada um com a sua mundividência. As minhas idas e vindas subterrâneas têm sido, por estes dias, acompanhadas pelo Afonso à força de «O Outro Nome que a Vida Pode Ter…» (querem que vos diga? É desilusão), e mais recentemente, «Chovia Como se o Céu Doesse» (ed. Âncora). São crónicas de largo espectro, com um fôlego que se perdeu na «modernidade» dos nossos jornais, possui um perfume de fado, vejo-lhe as frases a percorrer os lugares. E invejo-lhe o arquivo de detalhes, a agudeza dos nomes, o curto-circuito das experiências e dos lugares. Ao Luís ninguém tira Timor e a sua Kailako está sempre acesa no coração dos romances. No caso, trouxe velha e gasta edição (da Puma) de um romance que se fez mais. «A Redundância da Coragem», de Timothy Mo, contém fragmento da História de um país, com raízes no que fomos enquanto língua e cultura e colonizador e copa nas possibilidades sonhadas dos que lutaram pela independência. O Luís abre as primeiras páginas, desenha no ar o devido enquadramento, antes de sublinhar que nelas se encontram pessoas concretas, que conheceu, tendo algumas ganhado aqui um pouco mais de vida, que na real morreram em combate. «Por exemplo, a Rosa, que foi fuzilada pelos indonésios. Aqui vive um pouco mais. A Rosa era minha namorada.»

Casa da Cultura, Setúbal, 10 Janeiro

Em modo trimestral, regressamos à «Filosofia a Pés Juntos», esse momento higiénico de saudável pensamento, a destoar do abundante vómito de imbecilidades que desaguam nas redes, nos jornais, nas televisões. O António [de Castro Caeiro] propôs-se recuar aos anos 1920 para partir o conceito de «umwelt», cunhado pelo homem de ciência, Jakob Johann von Uexküll, e logo aproveitado pela filosofia.

Onde aqueles viam meio ambiente, habitat, ecossistema, logo os outros definiam mundividência e cosmovisão. Facilito e abrevio, claro, mas o essencial que guardo da noite está na complexidade com que interpretamos o que nos rodeia. E a variedade de mundos que a vida nos proporciona, a do animal e do humano, mas também a das coisas. Pulsam objectos e sujeitos para onde quer que nos viremos. Sendo que os mundos, como as vidas, são simultâneos.

Cisterna, Lisboa, 11 Janeiro

Ali no passeio da António Maria Cardoso, onde esta tão odiada cultura foi apagando memórias de mundos odiosos, rasgou-se o pano do tempo. Actores maiores das derradeiras décadas do século passado celebravam amores trocados e trocar. Sem ponta de saudosismo, o que pode ser experimentado com o Álvaro Rosendo de «Aos Meus Amores_2.0» é diário íntimo e dramático: o desenho a luz e objectiva de um «umwelt». O coração está na família e amigos, mas desloca-se por outros cenários em arrasto, essa marca dos corpos no tempo. Álvaro domestica o dramatismo, do tigre faz gato. As ruínas do Chiado ardido (algures na página) fazem-se metáfora de ferida maior, vencida pelos amores, que desemboca na única imagem a cores, a que propõe um infinito de árvores-nuvens, com a nitidez de um dia frio de invernos. Mas tocam-me sobremaneira as sombras, e as passagens pelos bastidores das bandas em acção, em digressão, nas costas do palco. Festas no lombo do gato. Diz o meu querido Luís [Gouveia Monteiro], com as palavras lúcidas com que pendura as centenas de fotos na alma da galeria, que, para o Álvaro, «o grão é a unidade funcional do tempo. Neste projecto artístico, que sempre procurou testar as fronteiras entre o eterno e o transitório, a fotografia – única, em sequência ou integrando o movimento sob a forma de arrastamento ou desfoque – surge como alavanca cravada nas brechas da inflexibilidade física. Porque congela e aprisiona e abate um pedaço de tempo, mas, em simultâneo, liberta-o, dá-lhe vida e preserva-o na cruel permanência das obras que sobrevivem a protagonistas e autores.»

Ler Devagar, Lisboa, 12 Janeiro

O João [Brazão] possui a chama dos que fazem. Por gosto. Aproximou-se do José [Pinho] e aconteceu, em plena Ler Devagar, um «Beber Devagar», bar de cervejas que promete ser o mais literário da cidade. E inventivo, na relação entre prazeres, no alargamento das experiências. Venha daí malte e lúpulos, mais mundo!

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