Artaud

[dropcap]F[/dropcap]alemos primeiro da loucura, esse imenso espectro que se abate nesta personalidade. Não sabemos se nasceu louco, mas que foi uma criança já de si marcada, foi-o: uma gaguez insidiosa, meningite, sonambulismo, e uma visceral antipatia pela cidade natal, Marselha. Era um ser profundamente esquisito, daqueles que só a raridade faz, as pessoas estranham, e tudo delas analisam ou julgam entender, mas que logo os subtrai a um mal muito maior que é o das suas próprias existências comuns. Artaud trazia a marca do génio, essa aflição tão ingrata para o próprio, como para aqueles que a temem com o ferrão da mórbida cobiça: para isso, vestiu-se aquele corpo enfermo de singulares disposições anatómicas que o tornaram fascinantemente repulsivo para alguns, hipnótico para outros, excepcional, sempre. Esta vida vai fazer o favor a si mesma de elevar bem alto a ruptura a tudo, com tudo, com todos. Uma vida em rota de colisão com as coisas se abre inteira para uma difícil e apaixonante marcha: é Artaud, o eterno Feiticeiro!

Artaud está a fazer 123 anos de vida no dia 4 de Setembro, uma efeméride que não deve ser esquecida neste mundo de doentes mentais que baniu para sempre o louco, de tal forma que deles nada mais saiu que pestilência nervosa… “arvoradas” em Amazónias de chamas insidiosas (aquilo não é um fogo, é uma fornalha a céu aberto que cobre de negritude os narizes de todos nós já de si bastante chamuscados) pertenceu ao Surrealismo, mas foi expulso por não querer a pés juntos politizar-se : “Que tenho eu a ver com todas as Revoluções do mundo, se sei permanecer eternamente doloroso e miserável, no seio do meu próprio ossário?”, e com toda esta recusa encontra-se no manicómio. Os amigos, esses, seguem os seus emblemas, e sabemos bem o quão ocupados se encontram nas suas ditirâmbicas manobras para se prostrarem de ora avante diante do seu insuportável sofrimento, dele, como o de qualquer outro, os mesmos que já lhe tinham sabotado algumas peças de teatro.

É a editora Gallimard que tutela a sua obra, e foi ela mesma a recusar-lhe poemas recomendando-lhe uma conduta mais literária (seja lá o que isto quer dizer) e é desta ruptura onde não aceita qualquer tipo de dirigismo e galopa na radical manifestação de si mesmo em termos abissais, que nascerá em 1929 «A Arte e a Morte». Todas as formas de entendimento estão agora vedadas a este alguém que de raiva em raiva faz tremer de luz um esqueleto amaldiçoado. É uma obra memorável que dita o que um cérebro faz nas suas ligações extremas e violentas sem que tenha de pedir licença ou perdão para afirmar a trágica e obsoleta condição da vida. Ele desejou escrever a sua história com sangue, isso sabemo-lo, sobretudo enquanto dramaturgo, desejou que a exigência poética de que era portador não fosse interpretada por reducionismos de pareceres psiquiátricos, desejou duplicar-se quase metafisicamente muito para além da palavra que todos esperam. Ele criou a sua própria condição electrizante e ao subir ao palco, era o triunfador, todo o espectáculo. A sua miséria era uma ave de grandes penas e ele a flama de um bem único capaz de fulminar incautos.

«O Teatro e o seu Duplo» é a escola de teatro de todo o século vinte. Artaud era incansável mesmo na insanidade e na desdita de uma vida que desejou que fosse gritada, e mais, escutada, e mesmo assim é ele quem rejeita a supremacia da palavra do chamado teatro digestivo. A arte é para ele como a morte, uma forma de reencontrar os pedaços estilhaçados de um corpo cuja combustão acelerava a sua própria tragédia, um pânico florescente que não cabia em nenhuma linguagem usada, vista, escutada ou composta, e é quando fala que ficamos agarrados a um feitiço qualquer que não podemos mais interromper. O que diz? Muita coisa, é um solavanco errático de esgares e sons onde se denota algumas palavras que pensamos conhecer e mesmo que não entendamos o propósito sabemos que o nosso cérebro abriu corredores muito fundos onde foi buscar um antigo xamã. Se o olharmos em simultâneo ficamos paralisados. Nós precisamos destas pessoas como de um bem maior, do seu sacrifício, da sua inteligência, da sua estranheza, da sua incontornável loucura de que estamos impedidos, do seu trabalho contínuo, audaz, perspicaz como única salvação para conseguir estar vivo, vida que se interrompe cedo, nesta caso, aos 52 anos, agarrado a um sapato. – Dirão: a arte performativa de Artaud! Mas não creio que qualquer intenção parecida lhe ocorresse nesse instante, morremos agarrados àquilo que temos à mão.

…naquele ponto subtil onde o olhar da consciência projecta
sem se perder um extremo fogo,
lá onde o nervo se desprende enfim do pensamento a repousar
sabe Deus em que estratificações astrais,
jaz a MORTE
como derradeiro sobressalto
de um saber
cheio de transes
mas SUSPENSO

Sem dúvida ainda uma obra de Arte. A Morte continua e a Arte é a sua versão mais completa.

A Humanidade em suspenso aguarda os seus Avatares, ela terá que os escutar. Talvez entenda mais sobre si mesma e dispa a audácia de uma monótona vida que a todos igualou até à frouxidão. Valerá a pena dar-lhe os Parabéns. Já foi Setembro.

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