A presença e o sentido

[dropcap]A[/dropcap] gente lê a ameaça e não acredita: “Como disse antes, e apenas para reiterar, caso a Turquia faça algo que eu, na minha grande e inigualável sabedoria, considere que está fora dos limites, destruirei e aniquilarei totalmente a economia da Turquia”.

Quem fala é Mao Tsé Tung, Deng Xiaoping, Kim Jong-un? Não, foi um republicano, Donald Trump, e um imemorial cansaço abate-se sobre qualquer linha de discernimento, na tentativa de reconhecer a partir de que momento se aceitou esta retórica política como legítima e indelével.

É o mesmo senhor que está destrambelhado e numa fuga para a frente, em jeito de paródia, já pede publicamente às outras nações que investiguem os seus adversários políticos.

Há uma ténia que rói a democracia, que a enfraquece por dentro e me faz lembrar um poema do mexicano José Emílo Pacheco, que incide sobre a bicha Solitária: «No jardim-de-infância nenhuma história /me impressionou como o relato de Pedro./ Durante anos / levou no seu ventre Pedro uma ténia, / uma serpente branca, uma solitária,/ albina e cega — a qual também era Pedro. /

Assim levamos todos muito cá dentro a morte / sem lhe conhecermos a forma até que um dia /ela sai do seu esconderijo e diz: vamo-nos?».

O drama é que quem aceita que os líderes políticos cheguem a este nível de auto-maravilhamento sedativo esquece o que outro poema do Pacheco prenuncia, Às térmitas: «Às térmitas, diz o seu Senhor:/ Derrubai essa casa! /E esfalfam-se não sei quantas gerações/ a perfurar, a verrumar sem sossego. /Formigas brancas como o Mal inocente,/escravas cegas e de sombra incógnita,/dá-lhe que dá-lhe em nome do dever,/ muito por baixo da alfombra /sem exigir aplauso nem recompensa /e cada qual conforme o seu minúsculo troço. /Milhões de térmitas que se afanarão/até que chegue o dia em que de repente/caia o edifício, feito pó./ Então as térmitas perecerão /sepultadas na obra da sua vida.»

Não serve de consolo verificar que hoje os media expõem tudo e que, como na pornografia, a partir do instante em que se mete o pau na boca não, há como querer enganar a vista a dizer que é o de selfie – não há consolo.

O pior é que não tenho nenhum aluno que faça a menor menção a esta anormalidade, que mostre sinal de ter entendido como a cavilosa afirmação de Trump, que aqui tenta forçar os limites do seu poder hipnótico, é uma colher envenenada a mexer o caldeirão do seu futuro; perdidos entre o rap e a miséria do seu quotidianozinho alheiam-se. Estamos lixados.

Alheiam-se dos assuntos de fora e de dentro: nenhum aluno me comenta o assassinato de Anastácio Matavel, director executivo do Fórum das Organizações da Sociedade Civil na Província de Gaza e como esta acção macabra confirma as ameaças de que são alvos os observadores eleitorais nacionais, em Moçambique; crime cuja contundência (dez tiros), no dizer de Carlos Mhula, da Liga dos Direitos Humanos em Gaza, “é uma clara intimidação à participação na vida política em Moçambique e também uma ameaça à democracia”. O medo está instalado e com isso esvaída a possibilidade de que os meus alunos queiram debater assertivamente eleições livres, justas e transparentes: é um balão furado.

Hoje, quarta-feira nove, darei uma palestra com o tema Culturas do Sentido/ Culturas da Presença, onde apresentarei a tipologia que, para esse lugar transfronteiriço, traçou o alemão Hans Ulrich Gumbrecht, um filósofo que soube contornar o beco para onde fomos atirados pelo demónio da interpretação e da febre analítica. Sem negar nada da pertinência das suas habilidades, Gumbrecht apenas nos lembra que há outros modos da experiência; que há culturas em que os exercícios intelectuais ganharam preponderância e outras em que a tónica foi colocada no corpo, no jogo, na performance, e em que nem todos os “discursos” se reduzem à tirania do texto interpretativo; mais, que, em havendo formas de inteligência, de fluxos, e de relação cujos processos passam antes pelo corpo e as suas interacções, há ainda esperança para o mundo como presença tangível ser tocado por nós e não meramente interpretado.

Tudo isto é complicado para explicar em dez linhas, mas, do ponto de vista das consequências sociais, numa cultura de sentido sucedem-se as permanentes e constantes tentativas de transformar o mundo, pois esta tem por base a interpretação (crítica) das coisas e a projecção dos desejos humanos no futuro; enquanto, este impulso no sentido da mudança e da transformação está arredado nas culturas da presença, nas quais os seres humanos propendem a inscrever o seu comportamento no que consideram ser as estruturas e regras de uma dada cosmologia ou tradição social.

E esta diferença pode às vezes ser fulcral, por exemplo, em nenhuma cultura de sentido se aceitaria como aceitável que um partido político continuasse a apresentar o mesmo cartaz em todos os pleitos eleitorais durante trinta anos, tal como acontece com a Frelimo com os seus eternos tambores e maçarocas, porque pareceriam símbolos já deslocados da realidade nem se consideraria sério que um partido apenas quisesse transmitir que sejam quais forem as circunstâncias e o tempo histórico tudo permanece igual. O que em Moçambique valida um “reforço da presença”, noutra cultura de maior pendor crítico este cartaz seria interpretado como um sinal de absoluta indiferença às marcas e aos desafios da actualidade.

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