Como vai estar o dia

[dropcap]U[/dropcap]m breve olhar através da janela dá para ver como vai estar o dia. É um olhar de relance. Não é um olhar reflectido. E, contudo, não é como se nada fosse. Um lapso de tempo, num ápice, dá para ver como vai estar o dia todo. Não há nenhuma pronúncia de juízo.

Não se diz: “Hoje, o dia inteiro vai estar assim”. Há de algum modo uma formulação mental do que está a ver-se naquele momento exacto com consequências para o futuro mais ou menos duradouro para as horas do dia por que se distribuem as nossas incumbências, horário de expediente, ocupações, preocupações, ou lazer. Num breve instante, num olhar que se dá num segundo, vê-se para além do que se constitui nessa sincronização entre o tempo durante o qual se forma a nossa percepção e o que se passa na realidade durante um tempo que excede, é mais duradouro, o tempo da percepção. O momento da percepção, em que eu inspecciono, com um só olhar como se eu não quisesse a coisa, a meteorologia do dia, é ínfimo relativamente ao que se vai passar nas horas seguintes, no tempo do dia em que estarei acordado, pode até projectar-se em antecipação que o dia terá a mesma meteorologia até ao dia seguinte e que até amanhã vai estar bom ou vai estar mau tempo. Como é possível a avaliação ou juízo segundo o qual vai ser assim e não vai mudar ou está a assim e vai abrir ou fechar mais tarde? Há um acesso que extravasa para fora do momento da sincronização entre ver e o que é visto, entre o olhar e o que fica fixado na realidade por esse olhar. A variação ou não das condições climatéricas é o próprio conteúdo da interpretação hermenêutica, que tem uma qualidade que é diferente e excede o que efectivamente é visto. Podemos perceber as qualidades climatéricas de um sítio como sendo sempre as mesmas ao longo de um mês. Podemos perceber a variação dessas mesmas qualidades ao longo de um dia. Podemos perceber invernos frios e chuvosos como verões secos e muito quentes. Podemos perceber a instabilidade do tempo, temperatura, aberturas, climas, etc., etc., etc.. Como é possível. O nosso acesso à realidade é mais longo do que o tempo que achamos necessário para que se constitua. Achamos que os processos e eventos que se dão na realidade determinam a duração do acesso, a sua adequação e inadequação. Podemos perceber que uma sucessão de eventos é tão rápida a dar-se que não conseguimos acompanhar inteiramente o que sucede, o que está efectivamente a acontecer. Um lance de futebol pode ser tão rápido que não se tem tempo para perceber o que realmente aconteceu. O juízo pode basear-se na impressão que dá, com que ficamos da realidade: se está ou não fora de jogo um jogador, se a bola entra ou não na baliza, bate dentro ou fora do corte de ténis, etc., etc.. A realidade requer a filmagem, para que, a partir das imagens, se possa perceber ao repetir vezes sem conta a partir de diversos ângulos o que sucedeu. Podemos ver em câmara lenta, podemos, pela repetição, promover uma base fenomenológica mais consistente, muito mais consistente do que a que se produz quando vemos, ao vivo, o que sucede. O tempo da percepção é o tempo do conteúdo percepcionado. Mas o tempo da percepção pode ser muito curto para um acontecimento muito rápido. Já dei por mim num Estádio de futebol à espera do que que a câmara televisiva nos oferece sempre: repetições. Mas a realidade só se dá uma só vez no tempo que requer para acontecer. O tempo da assistência pode ser muito lento para acompanharmos o que está a suceder e não acompanhamos o que está a suceder. Já nem se fala dos acontecimentos que não acompanhamos que são a maior parte dos acontecimentos do mundo, nas vidas das outras pessoas, nos seus mundos. Mas pode também acontecer que a nossa percepção seja tão rápida que não acompanhamos o tempo em que as coisas aconteçam. Não vemos a relva crescer a fazer barulho a aumentar de tamanho. Não temos a percepção do envelhecimento dos nossos rostos, de cada vez que nos vemos no espelho. É preciso que passe tempo entre a infância, a adolescência, o começo da idade adulta, o nosso rosto velho. É por discontinuidade que percebemos o envelhecimento, não o vemos sempre a cada instante. Só nos apercebemos disso pelo contraste criado pela discontinuidade, quando vemos alguém que não víamos há décadas, quando nos vemos no espelho sem percebermos para onde foi o nosso rosto de crianças ou jovens adolescentes.

O nosso acesso não depende do tempo da realidade, constitui o próprio tempo da realidade. Durante o tempo em que estivermos vivos distende-se o nosso acesso, sempre finito, limitado, confinado. Desse plano de fundo do tempo da vida vemos o plano de fundo do mundo à nossa frente, vemo-nos inseridos no horizonte formado pela abóbada celeste, pelo tempo de vida dos anos que passaram. No interior da duração do tempo que tem passado, compreendemos as durações das coisas, pessoas, estados de coisas, processos, situações, conjunturas de tudo o que existe e de tudo o que é sonhado, imaginado.

Num breve olhar inspecionamos através da janela como vai estar o dia: escuro, cinzento, chuvoso, farrusco. Num só instante vemos esses conteúdos, a temperatura, a humidade, a luminosidade. Tudo é visto intrincado, entrelaçado, a ensopar o dia. Dizer que o dia vai ser assim ou de outro modo requer uma avaliação que excede o tempo da duração da percepção em que vemos o que vemos, mas implica também uma qualidade de significado muito mais complexa do que a que dá apenas para conteúdos reais objectivos aí.

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