Santa Madonna do gosto

[dropcap]M[/dropcap]ais uma dessas atiçadas excitações microcósmicas varre alguns quadrantes das redes sociais ao dar conta que uma agência disponibilizava um bilhete para o concerto da Sra. D. Madonna Ciccone (nenhum parentesco com Maria de Nazaré, a suposta detentora original do título “Madonna”) pelo estratosférico preço de €8.999.

O sarau da famosa cançonetista decorrerá em Janeiro no Coliseu dos Recreios onde dantes se iam ver palhaços e funâmbulos e os ingressos postos inicialmente à venda importavam no intervalo entre €75 (suficiente para um jantar 2 pax no belíssimo “Ruvida” ou no estimulante “Izcalli Antojeria”, ali ao fundo da rua) e €400 (equivalente ao pacote de 3 dias em Istambul segundo o site da Agência Abreu) pelo que “se evaporaram” em meia-hora, no pitoresco dizer de um repórter excitado com a fortuna da freguesa das Janelas Verdes como se ela também lhe tocasse.

Seja dado conta que €8.999 chegam e sobram para um vôo ida-e-volta Lisboa – Nova Iorque em classe Executiva, 2 lugares na “Orchestra Central” para a “La Boheme” no Met, 3 noites num quarto decente no Plaza e ceia no selecto “La Grenouille”, sendo que nestes dois últimos casos o problema são as reservas.

Ainda vão nos primórdios as manifestações de escrúpulo devidas às 9 mil mocas, mas se tudo correr como costuma é de prever que lá para o fim da manhã, por volta do 60º comentário, a indignidade deste custo seja ilustrada pelo cotejo com o ordenado de um cirurgião que salva vidas e alguém virá recordar dilaceradamente que neste mundo há crianças com fome ou cães abandonados, para alargar a compaixão à esfera mais ecuménica dos sencientes. Isto é prado fértil para delíquios morais e lugares-comuns que pouco trazem senão a sensação de bem-aventurança a quem os verte.

É consensual que as coisas devem ter um preço justo. O problema é que a ideia de “justo” espatifa-se logo à primeira tentativa de lhe dar um valor, tema muito debatido e não tanto resolvido entre os arúspices das várias superstições e credos da economia. Justo para quem?

Para o que se acha no direito de usufruir de um bem-posto fora do seu alcance? Para aquele que investiu trabalho e capital e espera um retorno na medida que lhe pareça correcta? O que é um preço especulativo? A que bens e concomitantes preços se podem aplicar as punições ao “dumping” ou ao abuso de posição dominante?

Em boa verdade isto vai tudo da maneira como se quer gastar o dinheiro que se tem ou que se gostaria de ter para gastar. Está, pois, dependente dessa noção terrível que é o “gosto”.
Terrível porque o gosto é imperturbável e discricionário. Não sendo inteligente, nem estando certo, nem por isso deixa de ter alguma prudência o provérbio “gostos não se discutem.” Ora um módico de razão permite entender que nada é mais discutível do que o gosto. Mas quem se encanta com as músicas de Tony Carreira, ou de André Rieu, ou ainda e mudando de praticamente de planeta, de Thomas Adès à melhor lamentará quem lhe conteste a preferência como vítima do “mau gosto”, ou desdenhá-lo-á enquanto “rasca” ou “snob” consoante a inclinação.

O gosto funciona, portanto, como uma mónada que do exterior só aceita alimento. De modo que uma discussão em torno dele ele ou é instantaneamente consensual ou redunda num círculo vicioso que estrebucha e se abespinha na dependência de vários factores retóricos, nenhum deles a argumentação.

O caso desta Madonna é bastante ilustrativo. Aparentemente as suas efusões são levadas a sério não só pelos cultos que todos dizem ser, mas também por um bom punhado dos que têm reputação pública de cultos. Ou seja entre admiradores que noutros âmbitos reciprocamente se tratam de “pirosos” há uma convergência na apreciação. Uns usam-na para dar ao pé ou para testar alto e bom som a estereofonia instalada no automóvel. Mas outros, os circunspectos, dão-lhe a atenção devida a um “fenómeno cultural.” E assim é que na pose e nos trejeitos espampanantes da vedeta vêm um estilo disruptivo, nos seus dizeres pedestres entendem substância política, na batida quadrada das suas canções de 4 acordes ouvem um pulsar orgânico e a exuberância de meios dos espectáculos dela espanta-os pela grandeza estética.

Não faltam, portanto, argumentos para atribuir génio a Madonna. Ou melhor, podem-se convocar os argumentos que apetecer porque só uma coisa os valida: a autoridade de quem os profere. E esta reside na anuência dos pares desse locutor e no concomitante desagrado dos seus bons inimigos.

É tudo uma questão de gosto, sem outra razão que seja.

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