A mulher sem tempo

[dropcap]U[/dropcap]m dos mitos em que eu ainda acreditava quando cheguei ao Brasil era o de que os brasileiros são nossos irmãos, de que gostam de nós. Para além das piadas que contam de nós, que pode não ser medida de coisa nenhuma, e de ainda nos verem como colonizadores, que pode ser apenas sinal de desatenção, nos mundiais de futebol, de modo geral, torcem contra a selecção de Portugal. Um português normal até aguenta que se riam dele, que o julguem erradamente, mas torcerem contra nós pela Espanha, ou pelos EUA é dose que não aguenta. Já com quatro anos de Brasil, em Floripa, depois de duas horas numa “jam session” com um guitarrista de blues, o “cara” vira-se para mim e diz; “tu até que é legal”. Para portuga, faltou dizer, mas estava implícito, e não era brincadeira. Pois nunca se brinca com o silêncio.

Isto vem a propósito dos enganos com que se vive. Alguns não têm importância nenhuma, como o do mito de que os brasileiros gostam de nós, como nós gostávamos deles até nos invadirem a costa, mas outros há que são mais prejudiciais. Clô era professora de inglês e julgava-se cantora. Viveu a sua vida dando aulas como modo de sobrevivência, sem sequer investir muito nisso, sem investir em mais nada, até os seus relacionamentos amorosos e de amizade derivavam de julgar que um dia seria uma grande cantora. Na verdade, ela tinha boa voz e era afinada, mas não conseguia cantar com ninguém, nem com ela mesma, se se acompanhasse ao violão. Só “a capella” conseguia cantar uma música. Como gravava as suas sessões em casa, a solo, percebia que a sua voz era boa e afinada, e resultava daí que culpabilizava todos os músicos de não conseguirem acompanhá-la. Quando a conheci, Clô já tinha mais de quarenta anos e cantava desde a adolescência, numa contínua interrupção de projectos musicais. Evidentemente, à medida que ia envelhecendo, e os possíveis músicos para a acompanharem também, o desfecho dos projectos era mais rápido, nunca passavam do primeiro ensaio, pois a experiência fazia os outros compreenderem imediatamente o que acontecia. Clô não tinha tempo. Só sozinha, por um mistério do universo, conseguia sentir o tempo como parte da música. Acompanhada não tinha tempo nenhum. Dito assim até tem alguma poesia, mas numa sala de estúdio ou num palco a poesia dá lugar a uma enorme frustração.

À altura que a conheci, já havia a possibilidade de gravar em muito boas condições, mesmo sem um grande estúdio. Identificado o problema, mas sem lho dizer, pois isso era impossível – como dizer a alguém que se julga bonita que é feia? – gravei-a a cantar duas músicas sozinha. Mais tarde, no estúdio, gravei as guitarras e o baixo. Depois pedi a um amigo para gravar a bateria.

Tudo muito pouco convencional, mas resultou. Aquilo que fiz como um agrado, por amizade, acabou por se tornar no pior que lhe podia ter feito. Agora, quando se ouvia a voz dela, com a banda toda certa por trás, não havia quem não quisesse tocar com a Clô, acabando por alimentar-lhe o mito de que era uma grande cantora. Se antes não adiantava dizer-lhe que nunca poderia cantar ao vivo, com quer que se fosse – nem em “playback”, pois ela teria outros tempos para além ou aquém do tempo do “playback” –, agora era impossível que não se considerasse a cantora que sempre julgou que era. Sem querer, com a melhor das intenções, acabei por contribuir para que o mito crescesse, apagando de vez a possibilidade da Clô se ver na realidade. Só depois compreendi porque é que os seus amigos nunca lhe tinham feito aquilo que eu fiz, de gravar em estúdio uma banda por cima da voz dela: eles compreendiam que isso não ia ajudar a Clô, pelo contrário.

Hoje a Clô ainda continua a viver como se fosse uma grande cantora e que por uma ou outra razão ninguém consegue ou quer tocar com ela. Irá viver a vida convicta de que o seu mito pessoal de grande cantora é verdade, assim como a maioria dos portugueses acreditando que os brasileiros gostam deles, só por serem portugueses. Infelizmente, uma vida não tem modo de se ver a si mesmo errada. Muitas pessoas neste planeta – as que são privilegiadas, que não pensam apenas em como conseguir água e comida para sobreviver – de um modo ou de outro vivem seus pequenos mitos, que determinam toda a sua vida. Clô continuará a cantar sem tempo, sem ninguém, não fazendo esforços por mais nada, vendo em si mesma aquilo que não é. Ainda que tardiamente, sem querer contribuí para isso. Mas não quero contribuir para o mito da irmandade dos brasileiros com os portugueses.

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