O microfone e o mundo

[dropcap]B[/dropcap]elize tinha um desacerto com o mundo desde que nascera. Tinha 26 anos, mas já vivia há mais de dez fora da cidade e do estado onde nasceu, longe da família. Tinha tido algumas dezenas de empregos, uns apenas por um dia, e um igual número de relacionamentos amorosos. Não tinha paz em nenhum lugar nem com ninguém. Quando a conheci, trabalhava no salão de beleza de uma amiga durante o dia e à noite entregava-se à sua paixão: cantar. Crescera a ouvir blues e jazz e era isso que gostava de fazer. Para além dos barzinhos onde cantava, com este e aquele, que a acompanhavam com violão ou com piano, começara a cantar numa banda de músicas originais. Era rara a noite em que não chegava furiosa, a queixar-se disto ou daquilo, mas assim que se punha em frente do microfone, o mundo deixava de existir. Naquele momento era só ela e a banda. E só aí conseguíamos ver Belize sorrir. Talvez com mais precisão: era só ela e a música; os outros eram apenas um veículo para o que mais lhe importava.

Passados uns meses, a banda deu certo. Começaram a tocar em vários locais, chegando mesmo a aparecer em shows na TV. A banda começava a ter reconhecimento mediático e Belize parecia finalmente contente, de bem consigo e o mundo, mesmo longe do microfone. O mundo muda quando fazemos o que gostamos, até nós parecemos melhor do que somos e toleramos mais os outros. É preciso coragem, ou algum distúrbio, para, a despeito das mudanças de circunstâncias, permanecermos com a mesma imagem do mundo quando este nos facilita a vida.

Belize agora não se queixava do mundo e este queria saber dela. Choviam entrevistas, de revistas e jornais, de sites de Internet e de programas de TV. O mundo estava claramente a intrometer-se entre ela e o microfone, mas parecia não lhe causar transtornos. Chegava à sala de ensaios a sorrir, sem nada por que se queixar. Para os seus colegas de banda, apesar de ser mais fácil lidar com ela, estavam preocupados, pois Belize não parecia ser ela. Também eles estavam mais contentes que o usual, mas não mudaram tanto. Alguns continuam pontualmente a queixar-se do mundo, como antes faziam. Belize transformara-se por inteiro. Até o modo como se vestia reflectia essa mudança. Trocou as cores escuras de antes, dos jeans e das t-shirts, por vestidos luminosos. O cabelo também acompanhava a mudança. Quem não visse Belize há alguns meses e estivesse distraído do mundo, se a encontrasse na rua, não a reconhecia. Como reconhecer a tristeza, se vier vestida de alegria?

Com toda esta mudança, cheguei a perguntar-me se o microfone era mesmo o que ela queria da vida ou apenas um instrumento para conseguir o que realmente queria da vida: ser reconhecida e ter uma vida facilitada. Talvez a música, afinal, não fosse a sua paixão, mas tão somente uma aposta legítima e inteligente para ganhar facilidade na vida.

Apareceu um novo problema na sala de ensaios: não apareciam novas letras, que sempre ficaram a cargo de Belize. Os outros continuavam a compor, mas o reportório não avançava por causa da falta de letras e de voz. Belize não parecia interessada em novas músicas, mas em cantar as antigas. Aquilo que a impulsionava a compor era conseguir o que já tinha conseguido e, portanto, agora não fazia sentido continuar a compor. Evidentemente, isto não era vivido assim por ela, nem pensado nem sentido, sou eu agora a pensar retrospectivamente na Belize, embora tudo isto pudesse ser pensado, não fosse o que veio a acontecer em seguida.

Com a pressão de comporem novas canções e o aumento de popularidade da banda, Belize começou a desenvolver um organismo de desculpa lateral: “não consigo compor com toda esta atenção à minha volta”. No fundo, era uma vez mais a velha má disposição em relação ao mundo.

Desta vez não era direccionada às suas más decisões e às circunstâncias que daí advinham, mas em direcção ao exagero do mundo em relação a si. Em menos de nada, refugiou-se no álcool e nas drogas e escondeu aí o seu problema maior: ter de lidar consigo todos os dias.

Provavelmente, Belize nunca gostara de si e encontrara nas contrariedades do mundo uma desculpa em forma de refúgio para esse desencontro consigo mesma.

Seis meses depois, Belize foi internada numa clínica de recuperação, devido ao abuso de álcool e cocaína. Nunca mais foi a mesma. A banda, essa, arranjou outra vocalista e continuou. Anos mais tarde, encontrei Belize a trabalhar numa lanchonete, a dizer mal de tudo e de todos, a não conseguir apaziguar-se com o mundo e a cantar à noite em pequenos bares, onde, por detrás do microfone o mundo desaparecia.

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