Berlioz no Inferno: A danação de Fausto

[dropcap]A[/dropcap]ssinalam-se este ano 150 anos da morte do compositor romântico francês Hector Berlioz, ocorrida em Paris no dia 8 de Março de 1869.

O arquétipo da alma romântica torturada, Berlioz leu em 1828, aos 24 anos de idade, a primeira parte do poema dramático em duas partes Fausto, de Johann Wolfgang von Goethe, na tradução de Gérard de Nerval, e apaixonou-se imediatamente pelas histórias fantásticas, as vastas paisagens, e personagens multicolores. “Este livro maravilhoso fascinou-me desde o início”, escreve nas suas Memórias. “Não conseguia pousá-lo. Lia-o incessantemente, às refeições, no teatro, na rua”. O compositor identifica-se com o erudito Fausto, personagem que anseia transcender, romper com as normas e que é torturado pelo amor. O doutor Fausto, em busca do conhecimento e prestígio, vende a sua alma ao diabo, Mefistófeles, partindo numa trágica peregrinação que acaba por levá-lo à redenção através do amor. O seu fio condutor é a luta entre a luz e as trevas, expondo a dualidade humana, dilacerada entre o desejo de elevação espiritual e a atracção pelos prazeres e bens terrenos.

Berlioz ficou tão impressionado com a obra que compôs, entre 1828 e 1829, uma suite intitulada Huit Scènes de Faust (“Oito Cenas de Fausto”), para vozes e orquestra, que publicou como o seu Op. 1 em 1929, mas que não contavam uma história contínua. Na verdade, o próprio Fausto nunca aparece nestas cenas. Berlioz simplesmente queria conjurar a atmosfera da obra de Goethe.

Em 1845, mais de 15 anos depois, Berlioz estava pronto para trazer Fausto à vida novamente. Inicialmente pensou em compor uma grande ópera incorporando as suas “Oito Cenas”, pedindo ao libretista Almire Gandonnière que escrevesse o texto, mas acabou escrevendo ele próprio quase todo o libreto. Enquanto compunha a música, sentiu a necessidade de transmitir uma visão mais ampla da obra, para não a limitar pelo espaço operático tradicional, decidindo caracterizá-la como uma “lenda dramática”, para apresentação em concerto. Tal como já havia sucedido anteriormente com Romeu e Julieta (1839), Berlioz cria, em La damnation de Faust, novas formas musicais combinando elementos dramáticos próprios da ópera como monólogos, duetos e coros num formato de concerto próprio da sinfonia. Berlioz condensou radicalmente a trama da primeira parte de Fausto, eliminando mesmo algumas personagens e cenas. A filosofia de Goethe tão-pouco encontrou espaço no libreto: Berlioz, o eterno apaixonado, estava muito mais interessado no romance entre Fausto e Margarida. Como outros artistas antes dele, Berlioz mudou o significado da lenda de Fausto: o Fausto de Berlioz não é um grande estudioso; ele vive em busca, não de reflexões profundas, mas de grandes emoções; Fausto é torturado pelo tédio; não tem nenhum interesse na magia negra; Mefistófeles chega sem ser convidado; não existe nenhum pacto com o diabo, apenas um truque – Mefistófeles apresenta Fausto a Margarida com a intenção de levá-lo à danação; o amor é uma cilada armada pelo diabo; e quando Margarida vai para a prisão, Mefistófeles exige de Fausto a sua alma para que a de Margarida possa ser salva.

Este novo final foi a grande inovação de Berlioz. No poema goethiano, Deus sacrifica Margarida. No drama de Berlioz, o próprio Fausto é o redentor de Margarida. Ele sacrifica-se, descendo até ao inferno para que ela possa chegar ao paraíso, convertendo-se, assim, em seu salvador.

A música inovadora de Berlioz era frequentemente incompreendida ou ignorada em Paris e o compositor passou muito tempo em digressão pela Europa. Assim, grande parte de La damnation de Faust foi escrita durante a sua digressão europeia de 1845 a 1846.

A estreia da obra foi recebida com indiferença pelo público parisiense, com público escasso nas primeiras representações o que levou Berlioz a um grave revés financeiro. Tal como ele mesmo descreve nas suas memórias: “Nada em toda a minha carreira artística me fez sofrer mais que esta inesperada indiferença”.

Desde que voltou a ser representada em Paris com êxito, em 1877, a obra passou a fazer parte do reportório tradicional, revalorizando as suas indiscutíveis qualidades e do seu autor. Uma suite de três excertos orquestrais da obra – a “Marche Hongroise”, o “Ballet des Sylphess” e o “Menuet des follets”, costumava ser popular nas salas de concertos.

Sugestão de audição da obra:
Hector Berlioz: La damnation de Faust, Op. 24
Janet Baker, mezzo-soprano/ Nicolai Gedda, tenor/ Gabriel Bacquier, baritone/ Pierre Thau, bass/ Choeurs du Théâtre National de l’Opéra de Paris/ Orchestre de Paris, Georges Prêtre – EMI Classics, 1970.

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