Morte e beleza

[dropcap]E[/dropcap]m Janeiro de 1811 um jovem francês, à beira de completar o seu vigésimo oitavo aniversário, realizava um sonho: visitar Florença e ver as grandes obras de arte e monumentos que a cidade alberga. O seu nome era Henri Beyle, um autor de biografias musicais de segunda ordem e que mal chegavam para lhe garantir a sobrevivência. Mas naquela cidade Beyle não queria saber da sua pobreza. Em frente à Basílica de Santa Croce hesita, num misto de pausa solene e tontura. Ali estavam (e estão) os túmulos de Miguel Ângelo, Maquiavel e Galileu.

Ali estiveram homens como Petrarca, Dante ou Boccacio, outros ilustres toscanos. Beyle sente a grandeza do que vê, e sente-a de uma forma física, quase opressiva. Consegue que uma freira lhe abra a capela de Niccolini e pára, no final do transepto esquerdo. Várias figuras e frescos de uma extrema beleza decoram o espaço relativamente pequeno da capela. Beyle senta-se com a cabeça recostada de modo a admirar o tecto. Está esmagado pelo belo. E então, à saída de Santa Croce, sucumbe: «(…) fui atacado por uma intensa palpitação do coração…A nascente da vida tinha secado em mim e caminhava em constante pavor de cair». Chega quase a desmaiar.

Seis anos depois deste incidente Beyle deu-nos o relato do que aconteceu no livro Roma, Nápoles e Florença , já assinado com o pseudónimo que o iria imortalizar na literatura: Stendhal. Mas o seu nom de plume também seria associado a uma condição psicossomática devido ao episódio que descreveu. Em 1979 uma psiquiatra italiana, Graziella Magherini, depois de observar um padrão de sintomas em mais de cem turistas que visitaram os monumentos de Florença, cunhou o termo por que se conhece esta condição: a síndrome de Stendhal. Embora a comunidade médica ainda esteja a debater se estes sintomas são merecedores de validação científica, a verdade é que os guias turísticos da cidade de Florença já alertam os visitantes para essa possibilidade; e, por outro lado, os funcionários dos monumentos estão já preparados para lidarem com turistas que desmaiam ao contemplar o David de Miguel Ângelo ou as centenas de obras de arte que a Galeria Uffizi possui.

Não posso, com inteira sinceridade, dizer que alguma vez tenha sofrido da síndrome de Stendhal. Mas lembro-me de alguns episódios em que a contemplação da extrema beleza me afectou fisicamente: a saída da estação de comboios de Veneza, entre canais, depois de uma longa viagem desde Paris; estar perante A Ronda da Noite de Rembrandt no Rijksmuseum de Amesterdão, em que mal contive as lágrimas; ou passear sem destino por Roma e deparar com uma escultura monumental de Bernini.

Mesmo em Lisboa ainda por vezes me consigo comover num qualquer recanto, ou ao olhar o Tejo ao final do dia. É um misto de emoção e gratidão por poder viver nesta cidade que amo com todas as minhas forças. Mas infelizmente receio que o perigo de estar sujeito à síndrome de Stendhal esteja em Lisboa cada vez mais erradicado. No rio, durante o dia, barcos com ecrãs gigantes passeiam anunciando aos gritos um qualquer evento. No centro histórico da cidade é impossível ter outra emoção que não seja a claustrofobia e o desejo urgente de solidão. E a descaracterização continua: ainda há menos de uma semana descobri que uma das artérias mais antigas e bonitas de Lisboa – a rua dos Bacalhoeiros – ostenta agora hostels para todos os gostos e uma espécie de loja circense onde se vendem latas de feijão.

Eu sei que o tema não é novo, leitores. Mas estou cansado e triste, tenho de desabafar. Quero que quem venha visitar a minha cidade possa sucumbir à extrema beleza que ela possui. Quero – exijo! – o regresso urgente da possibilidade da síndrome de Stendhal em Lisboa. É uma questão de saúde pública.

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