O meteorologista de Estaline – O homem que viveu duas vezes

[dropcap]A[/dropcap]o ler a biografia de José Estaline, de Simon Sebag Montefiore, a minha curiosidade foi aguçada pelo facto de ser mencionado que ele (Estaline) trabalhara como meteorologista no Instituto Meteorológico de Tbilisi, na Geórgia.

Procurei mais informação mas não consegui saber quais as suas funções no Instituto Meteorológico. Tudo indica que não teria sido meteorologista na medida em que não consta que tivesse estudado matemática e física em profundidade que lhe permitissem compreender os fenómenos meteorológicos. Provavelmente limitar-se-ia a ler os instrumentos e a registar periodicamente os valores das variáveis meteorológicas, tais como a pressão atmosférica, a temperatura do ar, a precipitação e a avaliar visualmente outros parâmetros como a nebulosidade, visibilidade, nevoeiro, neblina, bruma seca, etc. Quanto muito teria exercido as funções de observador meteorológico.

Continuando a busca de algo que relacionasse Estaline com a meteorologia, deparou-se-me o livro “O Meteorologista”, do escritor francês Olivier Rolin. O meteorologista não era Estaline, mas sim o seu contemporâneo Alexei Feodossievitch Vangengheim. Além de ambos terem tido profissões na área da meteorologia e de serem entusiastas das novas ideias que alastravam pela Rússia no início do século XX, nada mais de comum teria havido entre eles. Estaline era filho de um sapateiro e nascera em 1878 em Gori, na Geórgia (Cáucaso) e Alexei descendia de uma família da pequena nobreza e nascera em 1881 numa pequena aldeia, na Ucrânia. No entanto o destino ligou-os de maneira trágica.

Enquanto Estaline enveredou pelo envolvimento político ativo, Alexei dedicou-se a uma carreira nas áreas da física e da matemática. Frequentou, no início do século XX, o Departamento de Matemática da Faculdade de Física e Matemática da Universidade de Moscovo.

Depois do serviço militar frequentou o Instituto Politécnico de Kiev e o Instituto Agrícola de Moscovo. Casou em 1906, tendo ingressado mais tarde no Serviço Hidrometeorológico do Mar Cáspio. Ainda antes da revolução é mobilizado como chefe do Serviço Meteorológico do VIII Exército, tendo os seus conhecimentos de meteorologia sido aproveitados em batalhas entre russos e austríacos, em que eram empregues gases, arma de guerra cujo uso era muito dependente da direção e intensidade do vento. Após a revolução de Outubro de 1917 e da guerra civil que se lhe seguiu entre Brancos e Vermelhos trabalhou no Observatório Geofísico em Petrogrado, onde foi o responsável pela previsão do tempo a longo prazo.

O interesse pela meteorologia foi-lhe provavelmente transmitido pelo seu pai, que montara uma estação meteorológica nas suas terras.

Apesar do seu pai pertencer à pequena nobreza, o que poderia fazer cair suspeitas de comportamento reacionário, Alexei optou por permanecer na Ucrânia após a revolução de outubro de 1917, contrariamente a um seu irmão que emigrou. Foi membro do partido bolchevique e, como tal, fez parte de numerosos comités e conselhos científicos. Foi nomeado para a direção do recém-formado Serviço Hidrometeororológico Unificado da URSS, a que chamava em alguns dos seus escritos “o meu querido filho soviético”. Foi o responsável pela instalação da rede de estações meteorológicas nas vastas regiões abrangidas pela URSS. Exerceu ainda outras funções, nomeadamente presidente do Comité Hidrometeorológico junto do Soviete dos Comissários do povo, diretor do Gabinete do Tempo e presidente do Comité Soviético para a organização do segundo ano polar. Contribuiu para a obtenção do recorde mundial de altura atingida pelo homem, com a subida do estratóstato designado por URSS1, que atingiu dezanove mil e quinhentos metros, em plena estratosfera, onde foram levadas a cabo observações de grande valor científico.

Alexei participou em discussões iniciadas na década de 1930, conjuntamente com os diretores de serviços meteorológicos de outros países, em que se preconizava que a Organização Meteorológica Internacional (International Meteorological Organization – IMO), organização não governamental fundada em 1873, evoluísse no sentido da criação de um organismo internacional que coordenasse as atividades meteorológicas a nível mundial e cujos membros fossem os Estados aderentes. Tal veio a acontecer algumas décadas mais tarde, em 23 de março de 1950, com a entrada em vigor da Convenção Meteorológica Mundial, criando-se assim a Organização Meteorológica Mundial (World Meteorological Organization – WMO), agência especializada das Nações Unidas.

Como fruto do seu trabalho, no primeiro dia do ano 1930, foi emitido o primeiro boletim meteorológico através da rádio.

Era com orgulho que contribuía assim, na sua maneira de pensar, para a construção do socialismo.

As previsões do tempo poderiam contribuir grandemente para o êxito da agricultura. E provavelmente assim seria, se houvesse uma rede de estações suficientemente densa não só na URSS mas também nos países a oeste, na medida em que nessas latitudes os fenómenos meteorológicos se deslocam com forte componente de oeste para leste. Na realidade os serviços meteorológicos não estavam tão bem organizados como atualmente e o sistema de telecomunicações não era suficientemente expedito que permitisse a transmissão dos comunicados meteorológicos com eficiência em tempo real, o que motivou que a fiabilidade das previsões do tempo não fosse muito elevada.

Entretanto, a coletivização da propriedade rural levou à desmotivação dos camponeses o que provocou, juntamente com outras causas, uma baixa dramática da produção agrícola. A coletivização não se limitou às imensas propriedades dos latifundiários, que tanto exploraram os camponeses antes da revolução de outubro de 1917, mas também às propriedades dos camponeses que praticavam agricultura de sobrevivência. Um camponês com uma ou duas vacas era considerado Kulak e, portanto, inimigo da revolução. A coletivização forçada e as requisições de cereais decretadas por Estaline levaram em 1932 e 1933 a milhões de mortos na Ucrânia.

Para justificar o insucesso na agricultura havia que encontrar bodes expiatórios. E assim Alexei foi acusado de propositadamente difundir previsões meteorológicas erradas com o intuito de sabotar a revolução. A sua ascendência nobre e ser irmão de um emigrado também contribuíram para que as suspeitas do Comissariado do Povo para Assuntos Internos (abreviadamente designado por NKVD) caíssem sobre ele. Ainda por cima tinha contactos com personalidades estrangeiras. O convite ao meteorologista escandinavo Tor Bergeron para apresentar palestras na URSS contribuiu para que caíssem sobre ele suspeitas de contactos com estrangeiros não só sobre meteorologia mas também sobre outros assuntos. Bergeron foi um dos criadores da teoria norueguesa sobre a evolução de depressões associadas a superfícies frontais que separam massas de ar polar de massas de ar tropical, teoria essa que adotou representações gráficas das frentes que ainda hoje são usadas nas cartas meteorológicas.

Alexei foi preso pela polícia política em 1934 e condenado a dez anos num campo de trabalhos forçados. Mais tarde, em 1937, foi-lhe agravada a pena para fuzilamento.

O Campo de trabalhos forçados situava-se no nas ilhas Solovetsky, no Mar Branco, próximo da Finlândia e do círculo polar ártico. Foi nestas ilhas que se instalou o primeiro campo, em 1923, do que veio a tornar-se na Direção Central dos Campos (Glavnoye Upravleniye Lagurey), cujo acrónimo GULAC se tornou célebre.

Ironicamente, em dez de agosto de 1956, três anos após a morte de Estaline, o presidente do Colégio Militar do Supremo Tribunal da URSS, assinou um decreto através do qual foram canceladas a decisão do Colégio da OGPU (Direção Política Conjunta do Estado) tomada em 7 de março de 1934 (condenação a dez anos em campo de trabalhos forçados) e a decisão da troika especial do NKVD de Leninegrado de 9 de outubro de 1937 (condenação à morte por fuzilamento). É pena que o cancelamento dessas decisões não devolvesse a vida do meteorologista…

A esposa de Alexei, Varvara Ivanovna, faleceu em 1977 sem saber onde nem quando e em que circunstâncias o seu marido fora assassinado. A versão oficial que lhe fora entregue em 1957 foi a de que o seu marido morrera em 17 de agosto de 1942, de uma peritonite.

Olivier Rolin, seu biógrafo, decidiu investigar a sua história quando consultava documentos reunidos pela ONG Memorial, associação russa dos direitos humanos criada durante a Perestroika.

A sua curiosidade foi despertada por uns desenhos enviados por um deportado para sua filha, Eleanora, tirando assim do anonimato uma das muitas vítimas inocentes dos tempos conturbados vividos na URSS durante a década dos anos trinta do século passado. Esse deportado, que oficialmente morrera de uma peritonite em 1942, mas que na realidade fora fuzilado em 1937, era Alexei Feodossievitch Vangengheim.

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