Nuvens passageiras ou nem por isso

Egas Moniz, Lisboa, 14 Maio

 

[dropcap]C[/dropcap]onheço quem leve a velha da gadanha para o ginásio. Uns, mais leitores que outros, levam a morte pela mão para os lugares da vida, da sua vida: a mesa, o miradouro, a tela, o desenho de humor, um jogo de futebol. Não a vencerão, sabem disso, ainda assim dão-lhe pancadas nas costas, empurrões cúmplices com o ombro, contam-lhe anedotas, o que muito a irrita por causa do riso comum, ela que padece de humores frios, dá-se bem no cemitério solene, dos que soerguem a tristeza em mármore. Quando a bruta aparece no hospital, atazanando, pedem-lhe por favor que vá fumar enquanto decorre a neurocirurgia. Ela obedece, distraindo-se, por instantes, do xadrez. Levantemos os braços e celebremos. Esta partida fica empatada.

Santos-o-velho, Lisboa, 20 Maio

Estava para ali no velório, a imaginar o que diria de cada um dos que entravam e saíam, o Manuel de Brito (1950-2019), praticante da aguda arte do sarcasmo e da má-língua. Aliás, há uns anos que o fazia, anonimamente e na versão moderada de comentário humorístico, nas páginas do Correio da Manhã. Interessar-me-á sempre mais a sua faceta de editor na Contexto, onde criou catálogo importante, e desigual por experimentar, mas que revelou Al Berto, os volumes fundamentais de Rubem Fonseca ou de Albert Cohen – no caso, com a sua cúmplice, Joana Morais Varela, na tradução –, além de, isto na ficção nacional, autores como Fernanda Botelho, Nuno Júdice, ou mais «fáceis», que nem a Rita Ferro. Como tantos, o impacto deste seu legado está por avaliar. Recordo conversas quase sempre agrestes, resgatadas apenas pelo riso, e conservarei a mais recente que me deu a ver outro rosto em homem intransigente. Saravá, Manuel.

Teatro da Rainha, Caldas da Rainha, 21 Maio

Ainda antes de partirmos, e o plural faz-se com o mano António [de Castro Caeiro], aconteceu na Horta Seca um daqueles momentos que (quase) me fazem acreditar estarmos vivos: alguém ajuda um infante a escalar o português escolar de hoje, enquanto uns esculpem projecto de sombra e luz, e a Isabel [Amaral] tenta deslindar o quebra-cabeças que acaba sendo Feira do Livro. Cada um para seu lado, acreditando. Corremos depois para o cozido à portuguesa, regado de mil maneiras distintas, celebrando logo à mesa a dita poesia. Acontece bastas vezes, para desatino dos cultores do fel. E voltámos a apressar-nos para o escuro do palco. O [José] Anjos tocou enquanto o mano-anfitrião, Henrique [Manuel Bento Fialho], ia entrando nas profundezas de «Uma Fotografia Apontada à Cabeça». Leitura crítica já a tinha feito antes, no inestimável «Antologia do Esquecimento», classificando-o até, em fórmula que desgosto, como «um dos mais estimulantes livros de poesia portuguesa contemporânea dos últimos 20 anos», mas agora era texto que se soltava como os aromas do jardim da Céu e do Carlos [Querido].

«Creio numa poesia que ande nua sem sentir vergonha por isso, que mergulhe nas águas do Lete para nadar contra a corrente. Poesia que… se não “recupera o ímpeto / do espanto”, pelo menos revigora-se nesse sentido. Que é feito do espanto, da inocência com que olhávamos para as coisas descobrindo-lhes respiração própria, única, singular? Os mortos revelam-nos a condição, a fotografia aponta-nos o passado à cabeça, mas à poesia pode convir o ânimo de uma vida que não se resuma a contar pelos dedos quantos anos passaram. Entendendo a queda, o poeta mergulha a pique no delírio inquieto das imagens, remove do corpo impurezas e aceita o mistério, nele já não opera a lógica do pecado, porque ao mastigar os frutos não sente vergonha, desnuda-se, oferece-se tal qual é, ri, chora, recorda, faz emergir nas palavras o tempo recalcado, desperta a morte do sono silencioso do esquecimento. Há quem nisto veja desespero, arte fundida pela técnica, logro, mas eu vejo fome de viver, vontade de provar todos os frutos proibidos e fazer valer o tempo da espera, vejo essa tão aterradora circunstância de ser-se livre, já não como anjo, ainda não como besta, simplesmente como homem.»

Sobraram simplesmente leituras, por vezes emocionantes (disponíveis na rede apesar das nossas vontades, mas que fazer?), do próprio poeta e convidados. E depois os comentários de uma sala cheia, a fazer acreditar que se pode despertar do sono silencioso do esquecimento.

Horta Seca, Lisboa, 23 Maio

Partilhamos a banca, na Feira do Livro, com a Livros no Meio. Ora muito por causa da poesia, mas também por se configurar como metáfora (voadora) da relação de Portugal com a China, ou o Oriente e a tradição, de modo mais genérico, escolhemos a nuvem. Pedimos ao Rui [Rasquinho], grande mestre no assunto, dos muitos lados dos vários continentes, para lhe costurar vestimenta. Fê-lo em tons justos de azul e branco (Propomos exemplar algures na página).

Horta Seca, Lisboa, 27 Maio

Parêntesis para questão curiosa que merecia mais tempo. Edições da abysmo surgiram à venda nas «lojas» de saldos que infestam as estações (de Metro e outras). Não sabendo quem autorizou ou de onde são oriundos esses fundos (de armazém, mas dilectos), questionámos a empresa que as revende, sem sombra de culpa. Uma primeira resposta, tintada pela mentira («foi só este exemplar e veio num lote», tendo nós conhecimento de muitos outros títulos), afirma ter «adquirido junto dos seus parceiros». E «prontos», mais não seria preciso. Mas vai ser, que quero saber que parceiros são esses, se foram roubados da distribuidora ou de uma qualquer outra proveniência, suspeita à partida nestas quantidades. Estes saldos em permanência, até podem surgir atraentes para o leitor comum, mas, a prazo, envenenam o trabalho do editor. O preço não pode ser o essencial neste ofício.

Feira do Livro, Lisboa, 29 Maio

A organizadora-mor inventou um desvio para quem se inscreveu por primeira vez. Somos o pavilhão E15 (devia-nos ter calhado o E13…), mesmo na fronteira dos corredores que sobem e descem. Achámos, por isso, que faria sentido acrescentar o logo abysmo desenhado pelo André [da Loba] e acrescentámo-lo a uma das paredes laterais. Nem quero saber da exacta razão, não ficou onde devia por interpretação das orientações, dos ventos, do baixo e do cima. Pousou em lugar incómodo uma gralha chamada dobradiça. Deram-se mais detalhes desgraçados, quando queríamos a perfeição e a leveza da nuvem. Razão tinha Li Bai: «Dormindo, as brancas nuvens são teu leito. / Se acordas, brancas nuvens são teu lar.»

Desconsolado, consigo puxar o renitente Carlos [Morais José] para um dos lugares que definem a cidade. Podia ser bordel, mas falo de alfarrábio. O Bernardo [Trindade] mostrou, com as mãos a subir a descer das estantes, que os melhores navios vão sendo de papel (pergaminho, por excepção). Houve ainda mais delicatessen, das que vencem tempo e a geografia.

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