Cantigas de Santa Maria

[dropcap]M[/dropcap]aio é aquele tempo que sabe a jogral pelo instante da gesta em flor que nos coloca nos cursos de água destes Cantares. Desfolhamos os de Amigo, tão nossos, tão primaveris, e sentimos uma alegria nova, um sentido de chão e cheiro a bailias, de amores, noites fecundas, e descemos até àquela Idade Média que nada tem das ditas trevas. Não devemos nomear assim tempo algum, pois que a todos subjaz a negritude, porém, nem todos nos dão esta forma sedutora. Mais treva do que a dos operários da primeira Revolução Industrial é difícil imaginar, sem recurso aos nichos da flora natural, nem aos campos em flor, morrendo jovens sem nunca ver o sol nos casebres das cidades onde jamais uma flor cresceu. E a Segunda Guerra? Jamais se vira também treva igual. As Primaveras não nasceram nesses anos, suplantadas que foram pelos gases da combustão dos cadáveres, e foi em Maio que findou.

Recuemos pois até ao título polémico «La grand clarté du Moyen Âge», que terá o seu zénite em pleno século XIII, onde se desfolham todas as artes e se unem diferenças mais tarde dissonantes. E é a Afonso X, o Sábio, a quem são atribuídas as Cantigas de Santa Maria desta época remota quem nos prende agora como os sonhos, avô de Dinis, tetravô de D.Pedro I, foi esse rei mecenas que quase poderíamos apelidar de rei da Península Ibérica nesse tempo de reconquistas e cujo extraordinário mérito foi o saber rodear-se de colaboradores muçulmanos, judeus e cristãos, uma forma laboral muito medieva, que só fez proporcionar a chegada deste legado.

Em galaico-português, a estrutura recobre várias temáticas para duas vertentes, a profana e a religiosa, a religiosa é predominante, reunida em quatrocentos poemas e transforma-se assim o rei no trovador mariânico. Escutado amiúde ao som de sinos, é nas noites de Maio que refulgem ainda em nós em ritmos de encantar, e quando despertos destes momentos, todos os sons ao redor nos parecem toscos, tristes, sem aquela infinita humidade cristalina; são os efeitos de uma trança muito bem orquestrada nas três religiões, e se os vários recitativos não são bem entendidos sabemos ouvir neles todas as emanações litúrgicas em seus sons.

Não raro estas Cantigas produzem pequenos milagres vibratórios como “a frescura de asa” que atribuímos sempre à manifestação, dado que as cantigas de milagre são mais expressivas que as de louvor na chamada proporção de nove para um, os milagres não são laudatórios, e em súmula sincrética e sintética, quase equivalem aos “haikus”. O narrador está na primeira pessoa e nada interfere nesta harmonia tão estranha para quem dela padece. Sempre a intertextualidade Bíblica será aqui uma menção honrosa com predomínio para o Velho Testamento, que os tradutores de Toledo, na sua maioria judeus, foram o elo imprescindível para a compilação de tais Cantigas, bem como a influência provençal tão presente e manifesta.

O bestiário da obra é um elemento de verosimilhança elementar na sua estrutura, assim como uma antiga flauta de Pã ou uma harpa de Orpheu encantasse os animais que sujeitos a melodias belas tivessem o ajuste anatómico a uma celebração, esta interação é por si um elemento de extrema delicadeza dado não excluir as criaturas, e foi a elas que por este tempo um outro foi composto «O Cântico das Criaturas», de Francisco de Assis.

O culto da Virgem é o tema dos trovadores que misturando lendas antigas, folclore e outros elementos contribuíram para uma enorme riqueza expressiva havendo em toda esta época a prática das romarias onde os romeiros edificaram os seus altares nas terras onde ainda hoje continuam presença viva estas tradições. As ermidas onde geralmente se tinham dado aparições foram por séculos lugares abençoados e ainda se mantêm transversais aos roteiros das viagens; o reportório de D. Afonso X é considerado o mais rico em termos de milagres narrados e daí a imensa disposição onírica dos cantares que envolve a soberania da manifesta presença a quem humildemente até um rei agradece com devoção e lealdade. A Dama. Ela está sempre presente ajudando um homem a livrar-se da sua natureza primária e dando-lhe o ensejo e a coragem de ser leal nas lutas que trava. É um tempo mariânico com toda a beleza que tal dote transporta, havendo a referência ao leite para testemunhar a divina substância da maternidade onde um seio é elevado a altar, outro dos elementos poéticos deste régio trovador.

E Maio aparece cantado e metaforicamente composto na «Rosa das Rosas» ….Rosa das rosas e Flor das flores Dona das donas “Senhor das senhores” e talvez um género híbrido apareça tomando o Paço de amores pelo pacto entre a Senhora e o monarca. A língua oral encontra-se aqui, a um tempo em que a escrita era reservada, e talvez seja esta a prestação mais humano destes Cantares. A língua é materna se fecundada por poetas. Foram glosadas as três línguas poéticas de então entre os trovadores, o galaico-português, a provençal e o toscano, e por louvor a D. Afonso, em terras distantes, era na língua em que este escrevia que firmavam os seus versos. Uma melodia que convém lembrar.

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