Ainda não acabei

Santa Bárbara, Lisboa, 1 Maio

[dropcap]T[/dropcap]rouxe-o comigo do lançamento d’ A Imortal da Graça, que as livrarias cobram-me sempre portagem. Por coincidência, as governam as boas vidas, vi depois anunciada a tradução deste «Sabrina», de um desconhecido Nick Drnaso (ed. Granta). Aliás, o meu desconhecimento do que se vai fazendo hoje na banda desenhada alastra, tristeza tão minha, como nódoa de petróleo. Esta notável novela gráfica, na linhagem do minimalismo de Chris Ware, diz-nos do presente andando sobre vidro partido. Com golpes narrativos de certeira subtileza, entramos de mansinho na vida das personagens, sem muito aprofundar, uma quase banalidade, todavia poética. As solidões só na aparência se tocam, limitam-se a conviver. Apesar do drama. A vida faz-se toda presa nas redes, sendo a opinião dos outros, talvez próximos, apenas mais um fio.

Somos fantasmas, figuras de papel à mercê de vandalismos vários: recortes, recomposições, rasgões, furos, amarrotamentos. Apenas brincadeiras. Apenas para que meter cada figurinha, nós, mas desatados, na fábula infantilóide de determinada perspectiva de mundo. Perturbador, com dose de intensidade e mistério que fere. Tive, algures, crónica onde defendia que os livros só nos tocam se lidos no momento exacto. Eis um caso.

Horta Seca, Lisboa, 4 Maio

Andávamos para o fazer há meses. Coincidindo com momento que pedia serenidade, recebemos o Mû [Mbana] para dedilhar cordas que prendem destinos. Convocou a Sandra [Martins] e o José [Anjos], além de outros amigos, que com ele cantaram, disseram, tocaram. Acolher um pedaço da Guiné-Bissau nesta casa invoca raízes e tempos que me parecem de outras vidas, não sendo, vejo agora. Nada tocando, para amarga e íntima tristeza, navego estas frustres articulações separadas por vírgulas. Por vezes, a busca de mudança significa meter as mãos na terra. Toquei em África raízes impressionantes. Sentia-lhes uma pulsação que logo rimava com coração e pulmão e o resto do corpo que lhes obedece, às vezes. A voz de Mû desenhada com os dedos nas cordas constrói centro, um nó de origens e tempos e histórias e vertigens, entretecendo tapete de possibilidades que são de transcendência. Estamos p’ra aqui em busca do rasgo no quotidiano, que permita a entrada da luz, que abra a própria luz e feche o seu núcleo em âmbar, em raiz de cola. Desatentos, custa-nos perceber que os diamantes estão onde menos o esperamos. Hoje, na horta seca, estendeu-se um chão possível.

Horta Seca, Lisboa, 7 Maio

A dedicatória deste «Vida Nova» (ed. Turbina) contém os desejos de uma vida boa. Entre nova e boa, hesito. Melhorou qualquer coisa ouvindo este regressado Manel [Cruz], que não é apenas álbum, mas excelso volume de capa branca e amiga do toque, com título desalinhado e com corte. Sinais que se prolongam em série de pinturas do artista, letras inscritas em texturas ricas e variadas, sortido fino da ruína. (Exemplo algures na página). Este lugar faz-se de tessituras sem fim, ligando a letra à pele, o verso ao som, a crueza ao ritmo. Acresce a pujança das canções, feridas e irónicas, cansadas apesar de enérgicas, quase todas grito. Melancólico? O manifesto começa em tom confessional, o artista à procura de gesto que o traga ao momento, contra o tempo e a favor da infância, homem de novo a inventar-se em outra vida. Pode haver outro tema?

O cabaret de fim de século, adolescente como tudo o que renasce, abre a porta para deixar entrar corrente de ar de inteligência e ironia. E perda, como convém. Sento-me. «Eu desta vez vou conseguir/ Desta vez vou largar/ Eu não estou farto, eu cansei-me/ De que apenas parece/ Eu não sei se eu sou forte/ Só que tenho este grito/ Não contem comigo». Oiço uma e outra vez. E outra, sem pensar muito no nó dos sentidos. Vou ali passar as mãos nas paredes, em certa casa de Sintra, longe, tão longe, no tempo. «Desta vez eu desisto// De lutar contra a merda/ Eu sou feito de perda/ É mais do que um desabafo/ É uma voz que desperta/ Um consolo de abutre/ No direito à vivência/ Do pacote completo/

Não lamento palavras/ São o meu alimento». Lamento muito. Muito, mas. «Porque não pões um fim nessa vida sofrida?/ A resposta tem graça/ É que eu adoro esta vida!» esta vida sofrida tem graça. «Ainda não acabei!/ Vamos embora chorar, vamos embora sorrir/ Vamos embora sair, vamos embora ficar/ Vamos embora cair, vamos embora voltar/ Vamos embora ou não, são tudo coisas do chão».

Horta Seca, Lisboa, 9 Maio

Despois de «Anastasis», lanço, em breve, «Anastática». Pura coincidência, juro, fácil de comprovar nos longos atrasos a que me submeto. Imagino agora a confusão que fará na distribuidora, nas livrarias, nos incautos. Pelo inusitado dos vocábulos, arranhando a incompreensão dos poucos que não sabem googlar, e pelo inesperado dos que, visitando dicionários e memórias, descobrirão modos de renascer. Assim saiba eu ler o que ambos contêm de explosivo saber, sentido, sonho.

Horta Seca, Lisboa, 12 Maio

Em pleno caos e desatino, estou à mesa com Tóssan, o dos desenhos, sim, mas sobretudo o das palavras. Estou p’ra ver em papel o que, por enquanto, só brilha nos ecrãs: visões e revisões de três generosos volumes em caixa, casa de acolher uma daquelas obras que tendem a viajar sob os radares. E noto: «Desengane-se quem espere encontrar apenas motivo de riso. Anda por aqui «um algeiroz sofrendo da telha», a morte apresentando-se nas suas vestes de tédio, o tempo a discorrer, um olhar parado, perdido na linha de um qualquer horizonte. Estamos em pleno território do nonsense, esta ideia de que na arrumação dos dias, algo se desalinha. Algo animal que despenteia, até os dentes do pente. A máquina que nos faz avançar outra não é se não o trocadilho, esse modo de tornar elástica a língua, de a atirar a paisagens outras, de fornecer uma interpretação diversa. Está mais transparente nos poemas, ainda que os contos também se deixem contaminar por este olhar penetrante que entra nas palavras para nelas descobrir outras por pura convivência, com a conivência dos sons, mais o que perdura de uns nos outros.»

Se aqui o absurdo vira refrigério, ali somos parados por um verso, uma agudeza lógica, uma quase melancolia. «É no tempo que passa/ que recordamos o tempo que passa./ E é neste encontro que vamos/ criar saudade do reencontro.// A fome come o homem/ a ambição também o come/ como um abraço optimista/ a repetir o nome./ É como fazer as coisas/ sem as ter feito/ de emoção a emoção/ caminha no presente/ mas o futuro é solidão.» Na solidão do meu presente, procuro a custo devorar a fome que me come.

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