A antologia do esquecimento

[dropcap]M[/dropcap]omento existe na vida dos poetas em que desejam ser antologiadores, o que se compreende muito bem dado o conhecimento da matéria e as vastas horas dos dias debruçados na leitura da causa. Mas alguns que da poesia têm quanto muito uma analogia com o fado, anunciando-se com vários graus de entendimento por designado interesse na expressão, não raro o desejam também, sendo por isso mesmo que há antologias para todos os gostos, que é sempre o tal gosto de gostar de muita coisa e de procurar entender o que corre nos veios delas.

Há mesmo antologiadores que em parceria com outros se obrigam, reunidos, em fazer parte do conjunto do seu antologiado. Defendem um princípio de natureza barroca e cada espaço vazio é dado como fórmula desconhecida, se insurgindo então sempre e com mais matéria do que a noção poetizante pode supor ou suportar. Daí que, se todo o cuidado é pouco em juntar, mais cuidado teremos de ter em subtrair.

Nas antologias escatológicas existe então um consenso total, uma irreprimível vontade que subjaz à força de uma subversão qualquer e nivela todo o dejecto em causa comum, partilhada, e de todos bem-dita. O que cobre a vasta gama do sermão, entre as virilhas do verbo e o desmando da aleivosia de cada um, é a audácia, que tende para a norma vassala que é o engordar do dislate soberano. Uma grande esteira climatérica, os chamados «Jardins de Inverno», se adensa por entre a floresta tropical dos ensejos onde o léxico coloquial reverbera, e onde as capas das antologias começam por ser duras, para logo afrouxarem lá para as edições seguintes.

Sejamos então um pouco mais claros – quem Antologia quem? Geralmente os do mesmo género literário, pois que devem unir assim as peças soltas e separar da curiosidade o destino que lhes é inerente e todo o impulso para a amálgama não será benéfico na expressão que um género traz.

Após as reformas e as lutas laborais, metem-se então alguns pelas páginas, adentrando-se numa malha prolífica de “poetas” mas aqui, como em tudo, é preciso começar cedo, estar presente, pois a centelha só brilha em cada um na proporção de um estranho abandono. Quando os não obreiros se manifestam costumam dar nós cegos e estranguladores na linguagem, a pandemia do ofendido empurra para o lixo o próprio termo poético. O talento dos outros começa a ser, não raro, uma arritmia, e se em ousada abnegação de sinais se sabe inquestionável, não sabe contudo o porquê de quererem ocupar um lugar tão difícil quanto o seu. Cuidando dos afetos de proximidade matamos a lira das nossas esferas mais distantes.

As Antologias de Eugénio de Andrade e Jorge de Sena são tratados alquímicos elementares, porém, nem sempre se nos apresentam como tal, subjugados que andamos por recentes, novos, novíssimos e interessantíssimas edições descontroladas. […] mera circunstância de igualdade/ infeliz neve que a si própria deve o esforço de pousar… vir corromper o Sol da primavera/ que não esqueça logo o projectar da Esfera – e, só depois, a Sombra essencial.[…] Jorge de Sena. Não raro também assoma aquela frase de Carlos Queiroz «não só com sentimentos se faz poesia, mas também o poema se nega aos ressentidos». A negação que quer provar abnegação também existe, e todas as volúpias mantidas para a chegada à lira de Orpheu do canto antologiador. «Os que vão morrer te saúdam», assim cumprimentavam César!

As Antologias de autor são, curiosamente, muito mais elucidativas para o interesse público, que deve reflectir na construção de uma obra e no tratamento de uma linguagem que urge ser reabilitada para que não fique perdido um certo som que educará mais e melhor que todas as narrativas dos muitos enunciados. A língua é uma matéria que se faz na correspondente do vocabulário poético, que ao separar-se dela vai moldando uma arquitetura deficiente na zona da linguagem cerebral. E nunca será com transferes de sangue contaminado que a percepção arranjará espaço para tão demarcada área cuja função mecânica por incrível que pareça se conhece bem menos do que era espectável. Ainda andamos intrigados, foneticamente falando.

Antologiamos os profetas, e deles só havia som. Quando a insurgência face aos livros sagrados se dá, gritam então as vozes antológicas da natureza humana, que foi quem as compilou no que pensa ter sido dito, é que ao nomear adquirimos a força precisa para combater mas, na longa matéria dos signos escritos, a Humanidade é um Verbo só. Porém, raros são os que lhes acrescentam mais tempos. Outros tempos. Mais amplexo verbal. Mais realidade, e mais sonhos, portanto.

Escutar os Cancioneiros antologiados da voz colectiva, que quando o mutismo vier depois da perda de sinal, os nossos gestos valerão pouco para salvar da ruína todas as coisas reunidas.

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