Ser livre

[dropcap]H[/dropcap]á umas décadas, ser livre era coisa só de revolução. Não se falava de outra coisa. E não se admire o mais blandicioso dos leitores, se o cenário se vier a repetir, pois o diabo à solta é coisa íntima destes pobres mortais que somos todos nós. Mais recentemente, a ideia de que ser livre é, também – dir-se-ia sobretudo – um ofício aplicado de cada pessoa foi-se tornando, a pouco e pouco, permeável na nossa sociedade. Por trás de cada uma destas concepções, que as mentes mais aferradas adoram opor uma à outra, respiram desígnios com tradição e com algum mar ao fundo (nem sempre com a melhor vista para a rebentação, conceda-se).

Neste mês que tem a coloração dos prodígios, o tema apetece. Mas dissertar apetecerá muito menos, até porque as folhas já encheram as árvores da Infante Santo e os sintomas dão-se agora a ver, mais por breves acenos e sinais do que por discursos que ocupariam a parede toda do tempo. Passemos então ao contorcionismo, ou seja: passemos a drapejar alguns dos sintomas. Escolhi três: escravaturas fugazes, famílias empapadas e multidões a eito.

Primeira história: quando alguém adora ser (ou confundir-se com) a linguagem que estudou.

Uma desses ‘bons espíritos’ que coloca likes nas redes sociais antes de ler seja o que for, incluindo estas minhas crónicas (sim, o afecto é o sistema solar inteiro), perguntou-me outro dia: “Do que tratam as tuas crónicas?”. Como bom actor, fingi que nada de anormal se passava da fronteira de Badajoz para cá, e respondi: “Gosto de cogitar sobre o nosso tempo, avançando e recuando como e quando me apetece, e sobretudo sem depender de heróis, ou daquilo que geralmente se designa por formações especializadas (referência a quem diplomado em X apenas fala de X ou, pelo menos, invariavelmente com o filtro de X, sem outros esforços adjacentes). A pessoa ficou sentida. A psicologia – e a linguagem técnica da psicologia que através dela falava – era a sua casa, isto é: propriedade privada em sentido estrito. Não gostou de perceber que assim era, na sequência do nosso abrasivo diálogo. Mas convenhamos que acontece tanta vez que um discurso (psicológico, filosófico ou de outra área) sobre um tema importante se torna numa verdadeira rebarbadora, por ser construído apenas por ‘palavras de ordem’ que só têm – ou teriam – vida própria no seio da redoma em que (e para que) foram criadas. Como se não se pudesse, de modo desalinhado, indagar o mundo fora desses limites. Como dizia o Jorge Silva Melo no filme ‘Ainda Não Acabámos: Como Se Fosse Uma Carta’ (2016) – “O que interessa é o início do gesto, o gesto a abrir-se”. No entanto, grassa por aí uma infinidade de ‘bons espíritos’ para quem o mundo é uma coisa fechada, feita de concordâncias fictícias e com vista apenas para remições ilusórias. Na realidade, ser-se escravo é, também, permitir que uma linguagem qualquer se sobreponha ao que uma pessoa é, enclausurando-a numa espécie de armário calafetado de onde não se vê sequer o mundo, quanto mais um bom buraco negro.

Segunda história: quando as famílias travam a redescoberta mais íntima da liberdade.

Ser livre implica uma radical autonomia face ao ruído que desaba todos os dias sobre as nossas cabeças.

A minha geração passou o tempo todo a rebelar-se contra essa “vaga sagrada que é a família”, expressão utilizada por Marina, uma das personagens que expressamente o repetiu no romance Lusitânia (1980) que Almeida Faria escreveu no final dos anos setenta. Laivos e indícios do Maio de 1968, porventura. Ainda que a família dita tradicional esteja em vias de fanico, falar deste tópico, hoje em dia, é o mesmo que lucubrar sobre os falanstérios de Charles Fourier. De qualquer modo, muito do que separa os dois países onde vivi, o nosso e a Holanda, é neste campo que se encontra. Nas terras de Vermeer, os jovens saem de casa antes dos vinte e o estado há muito que se colou à itinerância e estimula até a procissão. E pode fazê-lo, claro está. Por cá, a saída de casa já está no final dos trinta e, muitas vezes, é coisa que vai para além disso. O itinerário torna-se pegajoso e é evidente que os factores materiais acabam por selar a angústia das longas e traumáticas dependências. Estou em crer que este é um dos factores que mais amarra, em Portugal, as pessoas a formas de liberdade (muitas vezes) apenas abstractas e sem grande saída. O percurso próprio e livre, esse, é sempre o mais complicado.

Terceira história: quando as multidões e as suas furiosas causas ascendem ao vazio.

Perdemos também a liberdade, quando nos deixamos arrastar pelo vórtice, mesmo se as causas forem da maior nobreza. Aconteceu comigo. Há umas semanas, quando o tema da violência doméstica atingiu o clímax mediático, eu achei que o caso da cabeça de uma mulher encontrada na praia de Leça da Palmeira passava todas as marcas. E passava e passa, como é óbvio! Sinceramente indignado, embarquei no jorro e denunciei, dando à estampa um post em conformidade. Há semana e meia, veio a saber-se que o homicídio fora obra de uma outra mulher, devido a uma dívida e não a violência doméstica. Ir no rebanho, ainda que animado pela mais alta graça dos deuses, pode ser ruinoso para a nossa própria liberdade. O ‘Me Too’ e os seus feéricos apoiantes, lá no olimpo da sua infinita ‘magistralidade,’ têm muitas vezes caído nesta armadilha soez. No meu caso, o desacerto é e foi sobretudo da minha consciência e não teve, de certeza, consequências de maior. Seja como for, ser livre implica – deixem-me empregar palavras de Heidegger que não são propriedade privada de ninguém – não estar entregue ao “ente intramundano” e ao vazio que aprisionam e que não permitem “aceder a si mesmo”. Por outras palavras ainda: ser livre implica uma radical autonomia face ao ruído que desaba todos os dias sobre as nossas cabeças. Jogo complexo, é certo, mas o único em que vale mesmo a pena acreditar (até porque um clímax mediático não é, na larga maioria das vezes, um clímax efectivo e real).

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