Da tristeza

08/04/2018

 

[dropcap]T[/dropcap]inha passado a tarde com o poeta Luís Carlos Patraquim e pelas dezoito ele sugeriu, Vamos visitar o Craveirinha, que está de passagem por Lisboa.

Apanhámos um táxi e quinze minutos depois uma figura plúmbea abriu a porta. En-trámos numa casa soturna, velada por pesados reposteiros e por cores escuras nos mó-veis, maciços, e nos sofás.

E lá estava o poeta, com o semblante mais infeliz que me lembro de ter visto na vida. O Patraca apresentou-nos mas, face ao viático da tristeza, como reagir? O Patrarca tentou uma e outra vez levar o vate a sorrir, mas, atrás do olhar enfermiço, via-se: nevava.

Saí dessa casa com a impressão de ter visitado um castelo desmoronado; alguém que sobrevivera a uma infâmia para agora, a custo, mungir a dor de viver. Não me admirou que pouco tempo depois morresse; aquela presença tersa, fragilizada, subtraída à ilusão de qualquer palavra esfarelava-se à nossa frente. Recebera o Prémio Camões há pouco tempo mas pelos vistos fora tarde.

Creio que o José Craveirinho nunca se livrou do sentimento que o levara a escrever As Saborosas Tangerinas de Inhambane, um poema de revolta e de profunda decepção face ao rumo do país.

Leio agora que cerca de um milhão de crianças moçambicanas estão envolvidas nas piores formas de trabalho infantil, de acordo com os resultados do estudo realizado pelo Ministério do Trabalho, Emprego e Segurança Social (MITESS), em parceria com a Universidade Eduardo Mondlane-UEM.

Um milhão. E essa pesquisa fornece indicações específicas sobre as piores formas desse trabalho infantil: a mineração do tipo garimpo, a prostituição, o tráfico de drogas e o transporte de carga pesada.

Lembro-me de numa visita ao Gabinete Contra a Violência Doméstica, na Beira, ter ficado assarapantado porque até 10 de Março de 2010 – ano em que fiz a investigação -, haviam sido registadas na polícia, só nesses dois meses e meio, 110 crianças abandonadas. E do meu horror ao ter multiplicado isso pelo número das cidades existentes em Moçambique.

Passo a página e leio que Moçambique perdeu, nos últimos 15 anos, cerca de quatro milhões de hectares de floresta, devido à exploração desordenada e outras acções humanas.

As províncias de Nampula, Manica e Sofala são as regiões do país que apresentam o maior desmatamento. Este cenário, dizem os especialistas, ganha contornos preocupantes, agravados pela fraca reposição destes recursos; revela o especialista Credêncio Mahunze: “A província de Nampula, nos últimos 15 anos, perdeu mais de metade da sua área florestal, e se o ritmo continuar, nos próximos 10 anos, podemos não ter florestas nos próximos dez anos”, diz. O que terá efeitos no desencadeamento de um processo de desertificação e, evidentemente, numa alteração do clima local.

Moçambique, leio, perde igualmente elevadas somas com a exploração ilegal da madeira, cujo mercado principal é a China: pelo menos 540 milhões de dólares da venda de madeira não foram para os cofres do estado, entre 2003 e 2013.

Bom, Celso Correia, ministro da Terra e Ambiente, diz que o governo aposta na reforma do sector de florestas e em novos modelos de fiscalização; o mesmo governo que tem fechado os olhos ao saque.

Não creio que estas medidas venham a tempo de abafar as lágrimas não derramadas pela sombra do poeta, irmãs da tristeza que sentia.

09/04/2018

Tive um sonho, uma variação de Fausto; desta vez passa-se em África.

Matusalém – assim alcunhado por ser eterno, mais o seu partido, na chefia do governo – está deprimido: não vê mais nada a que deitar-se a mão.

As riquezas florestais foram delapidadas, vendida a madeira ao desbarato, o que degenerou numa desertificação crescente. Grande parte da mineração continua sem controle, explorada por “camaradas” que desviam para contas no estrangeiros os lucros em vez de os aplicarem na construção de infra-estruturas. Também a agricultura foi desmantelada – num país de terras férteis e bastante irrigado, nem um tomate agora se produz. As poucas fábricas de têxteis foram cilindradas pelas “calamidades” – o negócio que resgata a misericórdia dos países ricos, colocando nas ruas fardos de roupa a preços da chuva. As praias foram vendidas aos lodges estrangeiros. Os elefantes e rinocerontes contam-se agora pelos dedos, pois todos ganharam com a caça clandestina. A riqueza piscícola encontra-se depauperada, depois de décadas de varredura dos leitos do mar por frotas soviéticas e depois chinesas, que nada respeitavam nem tinham defeso. A corrupção alargou-se aos níveis mais capilares.

Matusalém está deprimido: para que raio estar no poder se daí já não vêm vantagens? Só abafar os escândalos, não lhe parece motivador.

Resolve endividar o país, nas costas de um parlamento que nunca respeitou. Em biliões.

E então aconteceu algo inesperado. Um ciclone de inolvidáveis proporções arrasa a segunda maior cidade do país e alaga um território imenso, provocando uma tragédia nunca vista.

Matusalém fica desesperado. Como mostrar uma competência técnica nunca antes exibida para levantar o país da calamidade, sem vislumbre de algo que tenha sobrado e que possa ser depredado?

E então, num rasgo, sugere-lhe o primeiro-ministro. O Presidente convoque o Diabo, ele atenderá.

Podemos vender a sua alma para salvar o país. Parece um mau negócio mas é o melhor. Seremos perdoados, tudo será esquecido, e morreremos ricos e benfazejos. E o Presidente será recordado como o grande salvador.

Melhor plano não havia. Recrutaram-se os melhores espíritas do país e, sob tremendos rituais, convocou-se a Besta. Uma, duas, três vezes, mas o Diabo não reagia.

Convocou-se o diabo uma quarta vez, com sacrifício do último rinoceronte, duas girafas e três pacaças. E aparece um furibundo Balzebu no seu lugar, que atira, dirigindo-se a Matusalém: «Não sei para quê este disparate de te convocares a ti próprio, mas estás a pôr alguns vulcões submarinos furiosos! Cuidado com o que vem aí!”.

Foi aí que se soube que o Diabo sofria de Alzheimer.

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