Com os corpos

Horta Seca, Lisboa, 31 Janeiro

[dropcap]P[/dropcap]or esta altura, obriga-nos a soberana lei fiscal a inventariar cada volume sobrante, em repouso nos armazéns, perdido nos esconsos das supostas livrarias, entregues aos mais desconformes cuidados. Mais adiante pagaremos imposto sobre este fracasso. Os livros por vender são activos, mantêm potencial de monta, afirma o ultra-sensível fisco, ainda não pesando valor literário ou outro. Não tarda, hão-de apurar o interesse, a influência e a cintilação dos textos com vista ao apuramento de taxa respectiva. O momento deprime invariavelmente, por tornar claro que os livros, ainda que circulem, demoram a atravessar para o lado de lá, continuam nossos em mãos alheias, por via da tóxica figura da consignação. O pior é que os apuramentos, por mais esforço investido, não chegam nunca a ganhar corpo de rigor. O que era compra sólida acaba por revelar-se miragem gasosa. Estou para encontrar negócio mais tolo que este.

>Horta Seca, Lisboa, 4 Fevereiro

Chegou-me «Rossio», primeira d’ «As 4 Estações» d’ «O Gajo». Não podia começar melhor esta viagem, logo recebendo um cais de partida. Calcando qual cavalo de ferro as linhas do horizonte, os dedos do João Morais nas cordas da viola campaniça desenham paisagens. E despertam desejos, tanto mais que não consigo desligar sul do som. Vejo cores. Em geometria performativa, os andamentos impelem ao movimento, dispõem-nos ao caminho, que é poema, diz o mano [José] Anjos, na terceira faixa: «uma linha lenta, sempre recta, sempre certa, para onde quer que se vire». Nem sempre recta nas volutas de aconchego, nem sempre certa na poeira que se levanta. Gosto muito de comboios, com a sua fala que liga terra ao coração e olhos largos a riscar a superfície das árvores e das nuvens. Esta viola faz-se gazua de arroubamento.

Horta Seca, Lisboa, 6 Fevereiro

Para não variar, muito antes da oficial, circula a oficiosa lista de candidatos ao Prémio Casino da Póvoa/ Correntes d’Escritas, dedicado nesta edição à poesia. Da dúzia, quatro pertenciam a autores da abysmo. Cada prémio literário levanta maremoto tipo lençol de comentários e gritos e choros e indignações, até alegrias difusas. Continuam sem me despertar grande interesse, embora me veja obrigado a navegá-los sem carta de patrão de costa ou alto mar. Para o melhor e o pior, talvez ajudam o corpus a definir-se na neblina do sistema literário. Para brutos abalroamentos ou suaves atracagens. Escolhidas por Ana Paula Tavares, Maria Quintans, Marta Bernardes, José António Gomes e Almeida Faria, as nossas vozes díspares e canoras foram a Inês Fonseca Santos (Suite sem Vista), o João Rios (Não É Grave Ser Português), o José Luiz Tavares (Rua Antes do Céu) e o Luís Carmelo (Tratado). Lá canta o nomeado Rios, sem o ponto de interrogação, maneira assaz nossa de morrer na praia: «a pata no meio/ e a pátria num canto/ se a pata for astuta/ e a pátria tiver recheio/ canto ou não canto.»

Facebook, 7 Fevereiro

Nunca fui ao México. Tenho medo de não voltar. Quem mais celebra os mortos que somos, caminhantes, às tantas festivos, daquela maneira? Recordo-te Albert Finney (1936-2019), na mais elegante das bebedeiras, caindo da tela, em tropeço, para a cadeira ao meu lado. Saltitando entre o castelhano de Buñuel e o inglês de Potter, fizemos festas ao cão tinhoso, evocámos a contragosto o Lawrence da Arábia perdida, ressuscitámos o frio Lázaro, só não perdendo a cabeça por um fio, bebericámos juntos até cair sob o vulcão, citando versos que diziam da sagrada bebedeira. Chorei por não te ter visto vez que fosse no palco, partilhando o ar que me faria crer que não eras inventado, antes lugar de tornar possível. Quantos corpos se sabem fazer palco?

Facebook, 8 Fevereiro

Depois dos mexicanos, só os franceses sabem desenhar a minha amiga morte. Desta vez, a da gadanha tapou os olhos ao Tomi Ungerer (1931-2019) sem lhe dar tempo para responder (ver algures na página desenho do autor). Ele sabia. Quantas vezes apanhou os modos que a dita tem de nos fixar em carne os contornos? Não chegam os ossos dos dedos das mãos, falange falanginha falangeta. Conta, isso sim, o modo como nos deu a ver aquilo a que o corpo pode aspirar, farol e antena. Ora recebendo os raios da fantasia, pondo no papel a maravilha da infância. Ora atirando a luz da sátira, quando nos perdermos no mar do quotidiano abstruso. Ora, entre coisa e outra, dar e receber, reinventando a boa «adultância» que não perde o instinto de brincar quando se atira às correntes alterosas da lascívia. Não sei se me oriento sem Tomi.

Alecrim, Lisboa, 11 Fevereiro

Bela que seja a rua, o nome devia coincidir com uma praça. O lugar do homem está em rua paralela, das que descem em direcção ao rio-quase-mar, não longe da Trindade. O homem é Bernardo Trindade e não se distingue dos livros, não apenas das lombadas e das páginas, do pó que a tudo toca, mas dos typos e das ilustrações, da linha com que se cosem, das sobrecapas protectoras. Por teimarem as coisas em se ficarem pelo que parecem, andava adiado este encontro que doravante não mais deixará de partir. Assinale-se em folha (persistente) de árvore-calendário. Ainda nada lhe ofertei e já recebi «The Blue Guitar», prodigioso álbum de gravuras de David Hockney ilustrando poema de Wallace Stevens, que parte de «The Old Guitarist », de Picasso. E onde o contorno procura a forma, o traço a cor, a palavra a canção e por aí fora: «So that’s life, then: things as they are?/ It picks its way on the blue guitar.// A million people on one string?/ And all their manner in the thing,// And all their manner, right and wrong,/ And all their manner, weak and strong?// […] And that’s life, then: things as they are,/ This buzzing of the blue guitar».

Politécnica, Lisboa, 14 Fevereiro

«A Gata e a Fábula» merece leitores assim. Jorge [Silva Melo] brindou-nos, por junto com as leituras da Maria João Luís, com visita guiada não apenas ao proscénio do romance, entre obscuridade e holofotes, mas aos seus bastidores, carpintaria e adereços. Sacudiu personagens, demonstrou a mestria da narradora no inesperado tecer do contar, enquadrou os temas e acertou o passo ao tempo. Declarou, afinal e de modo contagioso, grande amor à escrita «bisturica» de Fernanda Botelho. O resto deste lançamento há muito almejado, tendo pelas costas o palco dos Artistas Unidos, celebrou o encontro com uma família exemplar no esforço de pôr a obra nas mãos e olhos de novos leitores, tornada visível na energia da Joana Botelho. E ainda de um encontro «inquietante e vivo» com a Paula Morão, do Centro de Estudos Comparatistas.

CCB, Lisboa, 14 Fevereiro

Grande festa se encena ali naquele palco, cheio de actores e adereços e temas queridos! À primeira vista parece algumas que eu cá sei. A partir de mergulho em apneia em escritos e personagens de Fiódor Dostoiévski, a Carla [Maciel] monta, nestas «Confissões de Um Coração Ardente», uma girândola vertiginosa na qual a palavra nos puxa aqui para dentro e nos atira ali para fora de nós, das nossas interrogações, certezas, deslizes. Pode o amor resgatar-nos da miséria?

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