Da eternidade em vida

[dropcap]S[/dropcap]omos fracos juízes do nosso tempo, sobretudo quando pretendemos adivinhar a eternidade no pedaço de história em que nos coube viver.

1.

Em 1884 o jornal “O Imparcial” de Coimbra organiza um inquérito entre os seus ilustres leitores para que escolhessem a grande figura literária do seu tempo. Em 1º lugar ficou o velho Camilo, em 2º Pinheiro Chagas e em 3º Latino Coelho.

Por estes dias já Camilo se arrastava meio cego no solar de Ceide, arrepiado pelos guinchos do seu louco filho Jorge. Foram só mais 4 anos disto até se suicidar, mas ainda deu para o escatológico “Vulcões de Lama”. O preito dado pelos leitores a Camilo seria assim aquele que se presta por mera reverência às individualidades histórias que calha ainda estarem vivas. Porque dos 3 nomeados o mais reputado nos círculos instruídos e decentes da capital, o que marcava o passo das letras coevas, era, sem dúvida, Pinheiro Chagas. Tudo que publicava fazia furor, “O Terramoto de Lisboa” e “A Mantilha da Beatriz” foram best sellers instantâneos e a crítica jurava pela perpetuidade literária destes romances. A sua escrita fresca e optimista sem prescindir de um módico de erudição, permitiu-lhe uma “História Alegre de Portugal”, acolhida como a prova evidente de que os grandes problemas e entendimentos do século podiam ser divulgadas com sucesso popular.

Contra Pinheiro Chagas, ou contra o seu patrono Castilho, ainda rabiou Antero na famigerada Questão Coimbrã, ao passo que Ramalho Ortigão e Camilo, nunca o desconsideraram. Eça, esse, invejava-lhe largamente o prestígio e ambos não se coibiram de trocar acrimónias.

Jornalista, deputado, ministro, tradutor de Verne, professor de Literatura Clássica na Universidade de Lisboa, Secretário-Geral da Academia das Ciências, fundador da Sociedade de Geografia, tudo isto além de escritor; quem poderia duvidar que Pinheiro Chagas seria laureado para todo o sempre como o maior vulto literário do final do século XIX?

2.

Se calhar ainda hoje há quem se lembre de “A Ceia dos Cardeais”. Foi talvez o maior êxito teatral de um autor português.

Sobre ser um escritor de sucesso, Júlio Dantas foi uma figura pública sumamente respeitada. Duas vezes ministro: da Instrução Pública e dos Negócios Estrangeiros; professor no Conservatório Nacional; Presidente da Academia das Ciências desde 1922; fundador da instituição percursora da actual Sociedade Portuguesa de Autores; Doutor Honoris Causa pela Universidade do Brasil e depois pela de Coimbra, terminou a carreira em glória como embaixador de Portugal no Rio de Janeiro.

Júlio Dantas cortejou a monarquia, aclamou a República e foi deferente sem meias-tintas com o Estado Novo. Sendo insubstituível e incontornável não houve quem o tomasse como oportunista.

Contestou-o apenas uma pandilha de rapazes neuróticos, snobs e insolentes, infectados pela fugaz moda do modernismo da primeira década do século XX, que inspiraram a sua truculência em Marinetti ou Mayakovsky e se acoitaram atrás do insano Almada Negreiros. O indecoroso e tremendo ultraje mais confirmou, a quem estivesse em seu perfeito juízo, que a História guardaria Júlio Dantas como a quintessência da intelectualidade portuguesa do seu tempo.

3.

Fernando Namora enalteceu-se como figura de proa do neo-realismo, um movimento que pretendeu libertar as letras portuguesas da grandiloquente mas balofa retórica do Estado Novo, utilizando uma prosa simples e naturalista para não só denunciar a miséria em que Portugal vivia, como exibir a irreversível verdade histórica para que a humanidade caminhava.

Ao plinto de Namora apenas se avizinharam Alves Redol ou Soeiro Pereira Gomes, uma tríade cuja sombra se projectou na literatura portuguesa durante os anos 50 e 60 e ainda um pouco na década de 70. Fora deles, dizia-se, havia pouco a considerar e quaisquer notas destoantes eram remetidas para um limbo.

Ainda hoje não deve ter havido escritor português mais traduzido do que Fernando Namora, pelo que, além de uma certeza científica, parecia uma evidência que lhe caberia ser consagrado à posteridade como o grande farol das décadas em que presidiu à literatura portuguesa, ofuscando quaisquer outras luzes.

4.

Hoje, o panorama literário de Portugal é dominado por duas figuras quase intangíveis, autênticos clássicos em vida. Manuel Alegre e António Lobo Antunes são as incontestadas eminências das nossas letras contemporâneas, os mais autopsiados pela academia, os mais consagrados pela crítica. Não se vê ninguém que lhes denigra o mérito nem alguém que lhes pise o manto da preponderância.

Será possível haver quem lhes negue assento entre imortais e memoriosos como Chagas, Dantas e Namora?

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