40 anos de relações diplomáticas | O 8 que juntou Portugal e China sob o signo da prosperidade…e da paciência

[dropcap]D[/dropcap]epois de quatro décadas de costas voltadas para a República Popular da China, Portugal estabeleceu relações diplomáticas com o regime comunista que Salazar nunca quis reconhecer num auspicioso dia 8 de Fevereiro de 1979. Na China, o 8 representa mais do que um algarismo: foneticamente, a pronúncia aproxima-se da palavra “prosperidade” e é considerado um dos números mais afortunados na numerologia chinesa.

E essa boa fortuna era certamente desejada por portugueses e chineses para ultrapassar as vicissitudes que marcaram a época em que se estabeleceram estes laços diplomáticos. Foi em Paris que, a 8 de Fevereiro de 1979, os embaixadores português, António Coimbra Martins, e chinês, Han Kenhua, assinaram o comunicado conjunto sobre o estabelecimento de relações diplomáticas e a “acta das conversações sobre a questão de Macau”.

António Coimbra Martins, que tinha sido nomeado embaixador de Portugal em Paris em 1974, evocou o momento numa “sinopse parisiense” de Fevereiro de 2010, integrada numa publicação do Instituto Diplomático do Ministério dos Negócios Estrangeiros que assinalou os trinta anos de relações diplomáticas entre os dois países e os dez anos sobre a transferência da administração de Macau para a China.

É o diplomata chinês que primeiro aborda o português, em janeiro de 1978, propondo que os dois “fossem habilitados a convir nos termos do protocolo oficial que precederia e determinaria a troca de embaixadores, sendo aplanadas as divergências que pudessem surgir.” Lisboa responde positivamente, mas, entretanto, cai o primeiro governo constitucional.

Em junho de 1978, o Conselho de Ministros define Macau como território chinês sob administração portuguesa e a 10 de Junho Han Kenhua aparece, pela primeira vez, na receção organizada pela embaixada de Portugal para assinalar a festa nacional.

Só então “começam as negociações”, conta António Coimbra Martins, destacando que Macau era “uma questão prévia”. Segundo o embaixador, este “problema legado pela História (…) deveria ter uma solução apropriada” que passaria por um acordo entre ambas as partes quanto ao princípio da retrocessão ao estabelecerem-se as relações diplomáticas.

“Com estes princípios elaborou-se um apontamento que, em redação definitiva, devia ser assinado pelos dois negociadores… documento que veio a ser denominado “acta secreta”, ou acta das conversações havidas em Paris”, relata o antigo diplomata.

Os protocolos iam avançando a ritmo lento, dificultados pela política interna (Portugal teve quatro governos entre 23 de Julho de 1976 e 7 de Julho de 1979) e outros obstáculos, como a fuga do texto secreto “que estava a ser examinado” para um jornal e outros mal entendidos que nem sempre caíam bem junto dos chineses.

Num destes episódios, Han Kenhua tossiu. “Aliás, ele tossia muito. Várias vezes suspeitei de que houvesse doença no caso”, descreve o embaixador português, que não deixa de atribuir ao seu homólogo um grande “empenho nesta causa”, elogiando Kenhua pelo “seu caráter determinado e paciente”, a sua “cordialidade” e “a sua simpática sensibilidade ao ponto de vista português” que, no entender de Coimbra Martins, contribuíram decisivamente para o êxito das negociações.

“Apesar das sombras” que iam surgindo entre o Palácio das Necessidades e a embaixada da China em Paris, António Coimbra Martins conseguiu finalmente fixar uma data para a assinatura dos protocolos elaborados. Seria a 9 de Janeiro de 1979.

Ultimavam-se os detalhes – a sala, a mesa, a decoração, as bandeiras, o fotógrafo, tudo foi pensado ao pormenor – quando, na véspera, o motorista da embaixada de Portugal chega com “um recado da maior urgência”.

Abria-se um incidente que levou a novo adiamento: “A parte portuguesa pedia um certo número de alterações aos textos. Pequim concedeu algumas. Mas depois, reviravolta: renunciávamos às que tinham obtido concordância, para requerer outras, em diversos pontos dos articulados”.

Pequim “estranha” as reservas portuguesas e “passa ao ceticismo”, o que faz com que Coimbra Martins receie um novo impasse. Para o superar, faz então deslocar-se a Paris o próprio ministro dos Negócios Estrangeiros (Freitas Cruz), que dá a garantia de que o primeiro-ministro de Portugal (Mota Pinto) “era então o mais pró-chinês que tínhamos tido”.

Os enunciados dos protocolos voltam ao texto inicial e a tão desejada assinatura acontece finalmente a 8 de Fevereiro de 1979. Ficam as memórias de Coimbra Martins: “No teor do comunicado publicado em Portugal, figurava o nome do embaixador Han Kehua, mas não o meu. A acta, que se dizia dever ser secreta, fora publicada mais ou menos. Tornara-se a ‘acta de Polichinelo’. Em compensação transferia-se o secretismo para o nome de um dos signatários”.

O embaixador viu os seus serviços dispensados poucos meses depois, mantendo-se no cargo apenas até Julho daquele ano.

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