O excesso de tudo

• “Qual a sua opinião sobre a situação na Síria?”
• “Acha que devemos dar voz, no seio da democracia, aos movimentos políticos de matriz anti-democrática?”
• “Como vê o conflito no Iémen? E o papel da Arábia Saudita na geopolítica do Médio Oriente?”
• “O futuro treinador do Benfica deveria ter que tipo de perfil?”
• “É um anacronismo anunciado falarmos de «trabalho humano» num tempo em que a Inteligência Artificial parece cada vez mais ser capaz de fazer qualquer tipo de tarefa?”
• “Depois do Bosão de Higgs, que nos falta descobrir a nível de partículas elementares?”

[dropcap]C[/dropcap]om o advento da Internet, a informação massificou-se. O que não tornou especialmente fácil a tarefa de analisá-la convenientemente. Ao acréscimo da quantidade de dados não correspondeu qualquer incremento na capacidade de processamento do humano. Continuamos a ser as criaturas excepcionais mas excepcionalmente limitadas que éramos antes da World Wide Web. Pelo contrário; a desproporção entre o acesso rápido e maciço à informação e a nossa módica capacidade de analisá-la tornou-nos coxos. E não se vê como colmatar a lacuna que só agora se fez ver.

É comum assistirmos, no decurso de um noticiário televisivo, a uma ou mais rubricas de comentário, normalmente de cariz político ou generalista. Quando estas são de teor político, o convidado é quase sempre um senador do regime, ou seja, um tipo que activamente contribuiu para a erosão do estado-de-coisas no rectângulo sem nunca mostrar o ensejo ou a capacidade de alterar a percentagem de inclinação negativa do declive. A maior parte das vezes até foi parte activa na sua acentuação. O sucesso em Portugal não se mede pelos resultados obtidos. Os critérios pelos quais se afere o sucesso e correspondente visibilidade mediática são da ordem do oculto.

Quando o comentário é de índole generalista, o convidado – muitas vezes um senador ou figurão do regime, as únicas criaturas com passe vitalício e dispensa de exame de comentador – é inquirido sobre os mais diversos temas. Como procurámos caricaturar no início deste texto, é a guerra na Síria, a validade científica da homeopatia, a relação preço-custo dos vinhos chilenos ou a recente alunagem chinesa. Ninguém, a não ser duas ou três pessoas que se escusam a aparecer publicamente, sabe alguma coisa interessante e esclarecedora de matérias tão diferentes e específicas. A verdade é que o comum dos mortais, preocupado em conseguir fazer da vida um terreno menos inóspito, também não. E é por isso que a coisa passa e la nave va. Se cada um de nós conseguisse alçar o pescoço além do horizonte da mediocridade difusa, a nudez do rei apareceria sem qualquer esforço de focagem.

A grande petulância do desconhecimento nunca foi a da sua admissão. A ignorância confessa sempre foi – e é-o sobretudo nestes tempos – um sinal de lucidez: é normal não se saber de um assunto, ora por este ser extremamente complexo ora por falta de interesse ou de tempo para estudá-lo. O que nunca foi normal foi saber um pouco de tudo sobre tudo, e este é precisamente a aura que preside ao nosso tempo e que de algum modo reflecte, em jeito de acto falhado, a aura da nossa época: o de não sermos capazes de admitir que enquanto indivíduos – o grande credo da modernidade – estamos votados a saber muito pouco e a contar para muito pouco. Ao contrário do que prometiam as nossas mães, não somos especiais.

Haverá excepções, homens e mulheres que sozinhos empurram continentes história adentro. E talvez a evolução, no sentido lato, seja de facto a marca filigranar que une os indivíduos excepcionais ao longo do tempo. Mas isso não resolve nada, em termos de aquietar o espírito. Nós, os que porfiam para se manter à tona, não somos excepções. E saber que há tanta coisa que poderíamos ser mais do que somos só nos parece esmagar ainda mais.

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