Ti Coelho

[dropcap]O[/dropcap] Ti Coelho não me reconheceu, quando nos encontrámos, por acaso, na quarta feira. Apenas fingiu que sim. “Parece que me lembro, menina, mas não estou a ver de onde…” Nalgum lugar da sua memória, talvez acreditasse no que eu lhe dizia, que nos conhecíamos do Kiwi, o restaurante que ele teve durante muitos anos na Antero de Quental, e onde eu almocei e tomei café quase todos os dias durante pouco mais de um ano, já a crise ditara que se não abrisse à hora de jantar. A crise dele e da esposa, por quem tive receio de perguntar, num dos anos em que eu mais ganhei dinheiro. A minha crise era outra, então. Comida simples, boa e barata, era só descer um pouco e atravessar a estrada. Actinidia deliciosa. A Ariana diz que é a fruta mais bonita e sinto-me tentada a concordar. Havia um grupo de amigos que ocupava a maior parte do espaço a um dia fixo da semana desde há muitos anos. Sempre quis ter essa rotina com alguém, conheço quem tenha e acho saudável. É bonito, quando a amizade é um hábito, porque, de facto, parecemos cada vez mais desabituados uns aos outros. Muitas conversas, reuniões, alguns dramas e piadas, sempre que o Ti Coelho fazia traduções do latim mas dizia não saber o que o carpe diem na tatuagem de alguém significava. Nunca ouvi falar nisso, dizia. Pois é, ele não se lembrava de mim. Não propriamente. Não do modo que faria com que me abordasse com a rapidez e a alegria com que eu o fiz. Não do modo como fez um rapaz na outra semana, quando eu estava a olhar para o horário da roda gigante no Marquês e uma voz confirmou o que eu dizia à Diana, que a roda já estava fechada. Na altura, foi natural o que sorrimos naqueles segundos. Podia ter sido no dia anterior, termos ido trabalhar, ou sair com os amigos, ou voltar para casa a pé. Podia ter sido no dia anterior que ele decidiu ir para casa em vez de ir ver uma amiga que, na realidade, já cá não estava, que já não era ela. Podia ter sido no dia anterior o churrasco da Petra. Podia ter sido no dia anterior o meu aniversário, a vela num queque e a prenda um livro sobre viagens em África, para eu estar “mais em contacto” com as minhas origens. Podia ter sido no dia anterior o carro da Tânia ficar sem bateria. Podia ter sido no dia anterior eu ter começado a levar a máquina para todo o lado, mas eu não via o Cláudio há sete ou oito anos. Mas não pensei nisso, quando vi o Ti Coelho. E eu não o via, a ele, há cinco anos. Ele ainda era ele. Mas depois percebi que não podia esperar que me reconhecesse. Porque aquela rapariga que o Ti Coelho conheceu não era nada parecida comigo. Eu sabia que era eu. Mas quase mais ninguém sabia. Essa é a diferença. Para um, eu nunca fui. Para outro, eu nunca deixei de ser. Como explicamos a alguém que, só agora, de fugida, num corredor de um edifício no hospital onde eu nunca tinha entrado, é que está, realmente, a ver-nos pela primeira vez? E que mesmo assim, ainda falta? Eu não era eu, poderia ter dito. Naquele ano não fui eu que vim, foi tudo o que me aconteceu em anos anteriores. Mas o tempo estava a contar, ele tinha pessoas à espera e eu também, apenas não aquelas com quem ele esperava que estivesse tudo bem. Não lhe disse que não sabia se estava. Não lhe disse tudo o que tinha mudado. Talvez daqui a uns anos nos reencontremos e ele não me reconheça de todo. Talvez eu apenas lhe sorria sem dizer nada e lho perdoe. Talvez os quilos pesem mais do que os anos, na memória de alguém. Na minha, sei que sim. Talvez haja coisas impossíveis de esquecer mas das quais nos possamos ir lembrando cada vez pior, mesmo se vivemos nelas a vida toda. Ou quase. Talvez seja a única forma de nos mantermos sãos. Poderia ter explicado isso, também, mas ultimamente tenho aprendido muito sobre o que é preciso ou não dizer, que é como quem diz, tenho aprendido muito sobre mim, que eu ainda vou ser.

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