Deslocação e viagem I

[dropcap]D[/dropcap]emora-se muito mais tempo a chegar a um sítio do que se pode pensar. Mesmo que o não pensemos explicitamente, há claramente uma diferença entre deslocação por locomoção e viagem. Não estou a falar necessariamente da diferença que existe entre viagem interior e deslocação no espaço exterior. Não, se decorrerem no mesmo tempo. À chegada, percebemos que estivemos sem prestar atenção à paisagem. Nem há que pensar que estivemos a ouvir música ou a ver filmes, se fôssemos conduzidos e não os próprios condutores. A sensação do tempo da deslocação pode dar a noção de que decorreu depressa, nem demos conta do tempo. Mas também pode arrastar-se, parece que nunca mais chegamos.

Há, em todo o caso, uma diferença entre a deslocação por locomoção e o transcurso temporal da viagem. Se preparamos o que chamamos uma viagem de fim de semana, de férias ou ao estrangeiro, estamos já virados para a possibilidade efectiva do que vai acontecer semanas antes. Não quero dizer que seja uma preparação minuciosa, ou de uma viagem que venha efetivamente a acontecer. Podemos considerar essa hipótese como que a sonhar ou como um desejo ou um voto. Mas consideremos a antecipação das férias, por exemplo. Pode requerer mais ou menos preparação. Podemos ir só com uma mala com artigos indispensáveis. Podemos ir por uma semana ou mês. Contudo, uma semana antes ou nos dias que antecedem a partida, estamos completamente virados para esse dia futuro. Estamos ainda a cumprir calendário, com uma agenda própria, a trabalhar, com as atividades normais que temos, com os nossos hábitos nos sítios a que vamos, com os horários que temos. Ainda assim, estamos já em contagem decrescente para o dia e hora da partida. Estamos na antecipação já na expectativa do que vai acontecer. E ainda faltam dias para a partida. Não começamos a deslocar-nos ainda, não fomos, por assim dizer. Podemos até nem nunca partir. Mas a viagem já começou. Os preparativos mesmo apenas mentais estão já a criar tensão. Podem ser despedidos, podemos não pensar neles, mas estão já a formar-se no espírito, temo-los em mente.

As vésperas de viagem estão já a construir a própria viagem. Viajaremos nós ainda? Podemos correr mundo e apenas deslocar-nos. É tudo velho de mais e o que encontramos tem diferenças mas não são muito acentuadas se viajarmos sob o planeamento de roteiros de viagem feitos para sítios diferentes sempre com uma mesma linha de edição, gizada por alguém que nunca saiu do seu quarto, podendo até viajar mais do que quem de facto viagem. Ou não: alguém que nunca saiu do seu bairro e quer ver em todo o universo à imagem e semelhança do seu sítio.

Talvez possamos viajar e fazer a jornada. A deslocação pode ser não apenas a anulação da distância entre o sítio da partida e o sítio da chegada. Pode ser uma viagem, uma jornada, onde encontramos pessoas e não apenas passageiros, condutores. Podemos encontrar sítios e não localidades com longitude e latitude. Podemos chegar diferentes, como quem entra numa dimensão completamente diferente do que aquela em que se encontrava quando partiu.

Não chegamos também apenas quando o percurso foi feito e o caminho galgado.

Demora tempo a chegar e a esquecer velhos hábitos. É assim: para sítios, para pessoas, para coisas, para nós.

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