Salva Dut, activista e sobrevivente da Guerra Civil do Sudão: “Corri na direcção oposta ao som das balas…”

Era só mais um dia de escola quando os tiros romperam pela aldeia onde vivia Salva Dut, à altura com 11 anos. Depois de perder o contacto com a família, a luta pela sobrevivência deu-lhe forças para caminhar centenas de quilómetros no deserto até chegar a um campo de refugiados. Hoje, com 44 anos, leva água potável ao país de origem e conta a sua história na primeira pessoa

[dropcap]Q[/dropcap]ue memórias guarda do dia em que foi obrigado a fugir da sua aldeia devido à guerra?
É um dia que tenho muito presente. Eram 10h da manhã e estava na escola. De repente, começámos a ouvir o barulho dos tiros e tivemos de fugir. O nosso professor apenas nos disse para fugir… E corri na direcção oposta ao som das balas…

Que cenário viu quando fugiu da escola?
Foi um momento muito assustador. Lembro-me de ver pessoas perdidas a correrem em todas as direcções. Muitas já estavam cobertas por sangue, havia sangue por todo o lado.

Entre esse momento, em 1985, até 2002 esteve 16 anos sem saber da sua família. Pensou neles quando fugia?
Não. Num momento daqueles não se pensa em quase nada. O nosso objectivo é fugir, evitar o perigo e chegar a um lugar seguro. Quando o professor nos disse para fugir, deixei tudo para trás, até o livro de exercícios. Só queria fugir para longe do barulho das balas e nem pensei na minha família.

Quando se lembrou deles?
Quando me senti mais seguro, comecei a pensar neles, a perguntar-me como ia regressar a casa, a pensar se eles estariam vivos. Foi um pensamento que me perseguiu durante quase 17 anos…

FOTO: Escola Internacional de Macau

Após a fuga, em conjunto com 1500 rapazes, passou a fronteira para a Etiópia e mais tarde para o Quénia, com uma nova passagem pelo Sudão. Temeu morrer durante a fuga?
Sem dúvida, o medo estava sempre muito presente. Não estávamos num lugar seguro, não tínhamos como arranjar água nem comida, e depois havia os ataques das tribos e dos animais selvagens… Nessa altura, um dos meus melhores amigos morreu devido a um ataque de um animal.

Foi atacado por leão?
Não sei dizer, talvez tenha sido um leão ou uma hiena. Aconteceu tudo à noite, quando estávamos entre a vegetação e não vimos como aconteceu. Só começámos a ouvir os gritos dele e percebemos que estava a ser atacado. Mas era de noite e não conseguimos ver nada, por isso também não pudemos fazer nada… Fomos ouvindo os gritos até que eles chegaram ao fim…

A caminhada foi feita principalmente à noite?
Tinha de ser, até porque tínhamos de passar por outras tribos. Se nos vissem, o normal era que nos atacasse porque nos consideravam o inimigo. Assim, à noite caminhávamos para tentar passar sem ser vistos, e durante o dia tínhamos de manter-nos escondidos. Eram alturas em que não se descansava.

O que passa pela cabeça de um rapaz de 11 anos que vive uma experiência destas?
Sobreviver. Estamos tão assustados que só pensamos em fazer tudo para chegar a um lugar seguro. Não pensamos em mais nada que não seja, para onde vamos ou como vamos arranjar água ou comida. Também há sempre o medo de sermos encontramos pelo inimigo, que nos quer matar. São dias em que o único pensamento é a sobrevivência.

Neste tipo de conflitos, há tendência para os militares matarem as crianças, que se podem tornar soldados do inimigo. Vocês tinham noção disso?
Sim, nós sabíamos que as crianças eram alvos preferenciais e, como é óbvio, isso contribuía para que tivéssemos mais medo.

Como é que uma criança com 11 anos lida com esta situação e com o facto de ter perdido o contacto com a família?
Eu estava tão focado em sobreviver que o meu cérebro não pensava em mais nada. Só às vezes, nos momentos de descanso, é que pensava no que estava a acontecer e na minha família… Mas o que é que eu podia fazer? Não havia correios, não havia telefones, não havia transportes para regressar… Tive de aceitar que o que não tem remédio, remediado está…

O Salva Dut é cristão. Alguma vez pensou que Deus não existisse nesta fase?
(Pausa) Acho que nunca tive esse sentimento. Eu rezava sempre à noite e de manhã. Rezar e estabelecer uma ligação com Deus foi um grande apoio, uma grande motivação nessa fase. Até porque quando uma porta se fecha, há sempre a possibilidade de Deus abrir outra. Considero que foi isso que aconteceu.

Esteve no campo de refugiados de Lodawar, no Quénia, seis anos. Como era a vida nesse local?
Foi uma altura em que estava por minha conta. Não tinha familiares e no campo, que é gerido pelas Nações Unidas, davam-nos comida e roupas. De resto, não havia muito mais nada para fazer. O objectivo era estar num lugar seguro.

Em 1996, é escolhido num programa norte-americano para ser adoptado por um família em Rochester, Nova Iorque. Foi uma mudança radical?
Foi muito difícil. O choque cultural foi tremendo e lembro-me que achava que estava sempre frio. Também não falava a língua, mas tinha de ir à escola, trabalhar… Foi difícil, mas sabia que tinha de me adaptar, porque poderia melhorar muito a minha vida.

Vinha de uma aldeia onde não havia água nem electricidade. Sentiu uma grande diferença no estilo de vida?
Sim. Na casa onde vivia no Sudão do Sul não existiam lâmpadas nem água. Quando cheguei ao EUA há todas estas coisas que tornam a nossa vida muito confortável e que utilizamos de forma automática. Por exemplo, eu não sabia acender uma luz. Este tipo de coisas que as pessoas nos países mais desenvolvidos fazem de forma natural, porque sempre viveram com elas, eu tive de aprendê-las.

Como se sentiu por ir para os EUA?
Sinto-me abençoado por Deus, que me guiou e me deu algo de positivo, apesar de todas as situações difíceis. Estive numa situação de guerra com 11 anos, tive toda aquela caminhada de centenas de quilómetros até chegar a um lugar seguro, foram condições em que muitos morreram. Eu sobrevivi e ainda tive a oportunidade de ir para os EUA. Também pude regressar ao Sudão do Sul, ajudar as pessoas lá, e reencontrei os meus pais. É algo fantástico.

Em 2002, um ex-companheiro do campo de refugiados informa-o que o seu pai está a ser tratado numa clínica das Nações Unidas… Como foi o reencontro?
Foi uma emoção tremenda. Quando me aproximei dele, ele não me reconheceu. Eu, primeiro, disse: “Olá, pai”, e ele respondeu: “Quem és tu?”. Tive de dizer: “Sou eu, o Salva” e ficámos ambos muito emocionados. Durante esses anos todos tinha muitas dúvidas de que o voltaria a ver vivo.

É também a partir desse momento que decide criar a Water for South Sudan, fundação que tem como objectivo levar água potável às várias aldeias do Sudão do Sul…
Ele estava a receber tratamento devido a uma doença causada pela ingestão de água que não é potável. Nessa altura, decidi que tinha de fazer alguma coisa para ajudar as pessoas como o meu pai.

E o reencontro com a sua mãe, quando ocorreu?
O meu pai teve de caminhar mais de 480 quilómetros para chegar à clínica e ela ficou na nossa aldeia a tomar conta do resto da família. Por isso, só estive com ela depois de regressar aos EUA e voltar novamente ao Sudão do Sul.

Ela reconheceu-o?
Não, fui eu que a reconheci. Estava sentado numa mesa numa sala, quando ela entrou. Nessa altura não a vi logo, porque estava a falar com o meu tio. Até que ela entra e pergunta ao meu tio: “Onde é que ele está?”. E ele disse “é este rapaz aqui”. Foi fantástico o reencontro.

Como se sente por ter estado tanto tempo afastado da sua família?
Sinto-me muito mal com isso. É algo que desejava que nunca tivesse acontecido. E é isto que é a guerra. Sempre que há guerra quem sofre são os inocentes.

Este tipo de injustiça motiva-o para tentar melhorar a situação no Sudão do Sul?
Talvez seja uma das razões…

Uma das ideia que defende é que o acesso a água pode pacificar os conflitos entre as diferentes tribos do Sudão do Sul. Porquê?
Quando as pessoas têm acesso à água não precisam de se deslocar à procura deste bem-essencial. Esta busca é uma das causas dos conflitos entre as tribos. É frequente no Sudão do Sul, ver as pessoas mais novas a matarem-se umas às outras devido ao acesso à água. Neste sentido, trazer água para as diferentes aldeias também é contribuir para a paz.

E isso não cria um sentimento de inveja?
Não é a isso que temos assistido, pelo contrário. É comum que pessoas de tribos diferentes se ajudem a abrir novos poços. Nessas situações é comum ouvirmos as pessoas de tribos diferentes a dizerem somos todos o mesmo povo.

Qual é o maior desafio nos trabalhos de escavação de poços de água?
Há muitos. O principal é a falta de infra-estruturas, não temos estradas, fábricas com capacidade para produzir tubos que utilizamos, ou as bombas de água. Todos os materiais que utilizamos são importados.

O Sudão do Sul está em guerra civil desde 2013. Na semana passada houve um acordo de paz entre o Governo e as forças rebeldes. Acredita que é desta que a guerra termina?
No passado houve acordos semelhantes que foram violados. Não sei o que vai acontecer desta vez. Mas espero que seja diferente, que haja paz. As pessoas do Sudão do Sul já sofreram demasiado com as guerras e só com a paz e estabilidade poderá haver prosperidade.


Perfil

Nascido em 1974, Salva Dut nasceu na tribo Dinka e aos onze anos, em 1985, viu-se obrigado a fugir da aldeia onde vivia, no Sul do Sudão, devido à Segunda Guerra Civil. É um dos 40 mil “Lost Boys” [crianças perdidas em português], nome para os menores que se perderam dos pais devido ao conflito armado. Em fuga, com um grupo de várias crianças, Salva teve de percorrer centenas de quilómetros, para encontrar abrigo, primeiro, num campo de refugiados na Etiópia e, depois, no Quénia. Em 1996, ao abrigo de um programa das Nações Unidas foi adoptado por uma família de Nova Iorque. Actualmente, é cidadão norte-americano e licenciou-se em Negócios Internacionais no Colégio Comunitário de Monroe, que pertence à Universidade Estadual de Nova Iorque. Em 2003, fundou com um grupo de amigos a associação sem fins lucrativos Water for South Sudan [Água para o Sudão do Sul], que tem como objectivo levar água potável a um dos mais novos países do mundo.

Conflitos armados desde 1955

Em 2011, a República do Sudão do Sul tornou-se oficialmente um país. Porém, encontra-se em guerra civil desde 2013. Na semana passada, foi assinado um acordo de paz entre o Governo e as forças rebeldes, mas há bastantes dúvidas quanto ao sucesso da resolução, uma vez que no passado, por várias vezes, acordos deste género não foram cumpridos. Desde 1955, altura em que o território que agora constitui a República do Sudão do Sul pertencia ao Sudão, que a História do país está marcada pela guerra. Nos períodos 1955-1972 e 1983-2005, o Sudão do Sul, maioritariamente cristão, lutou com o Sudão, maioritariamente muçulmano, por maior representatividade e mais tarde por independência. O objectivo foi alcançado em 2011, após um referendo. Porém, dois anos depois, conflito armado regressou à região. Agora, Salva Kiir, presidente do país, e Riek Machar, líder dos rebeldes, dizem que vão partilhar o poder. Resta saber se vão efectivamente conseguir entender-se e terminar a guerra.

Convite da Escola Internacional de Macau

Salva Dut esteve em Macau a convite da Escola Internacional de Macau [The International School, em inglês], onde teve a oportunidade de partilhar a sua história e falar das actividades da Water for South Sudan com os alunos da instituição. Além disso, houve actividades promovidas pela escola de recolha de fundos para financiar a escavação de mais poços no Sudão do Sul. “Até hoje, já cavámos 349 poços e treinámos uma equipa especializada para auxiliar as diferentes aldeias em questões de higiene e manutenção desses poços”, disse Salva Dut, ao HM. “Os efeitos da escavação de um poço são fantásticos para as comunidades. A menina que antes tinha de andar quilómetros para ir buscar água para a família passa a ter tempo para poder ir à escola. E isso é uma semente para um futuro melhor para o Sudão do Sul e para a sua população”, acrescentou.

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