Uma língua de mar   

[dropcap style≠’circle’]E[/dropcap]xistiu algures uma teoria da arquitetura portuguesa que não é mais do que a extensão do desenho das emoções projectáveis que ao modelar a paisagem teceu a linha da saudade. A linha horizontal. Nunca de facto o gótico foi expressivo entre nós, nem os vastos guindastes para os céus enaltecidos enquanto desafios imaginários. A linha que se estende oceânica também modela as vozes e tem verbos longos, arrastados, que abre vogais, amplia noções, pega no fio e transporta-o em deleitoso arrastar de forma deitada. Uma paisagem que os sentidos apreendem, as vontades compõem e dá origem a formas de pensamento. Ao partirmos de um lençol deitado, bordado, desses monumentos compridos, densos, transformáveis, levamos ainda o grande fio que irá servir de laço «laços de amor» às vestes dos Vice-Reis da Índia.

Uma corda em pedra que sobe, que é rente, que enreda, serpenteia, não é o mesmo que um bastão de um «Excalibur» nesta designada outrora terra de Mu, ou reino das serpentes, que definitivamente não gosta da recta e onde tudo ao redor nos lembra disso. Até os signos alfabéticos nos dão conta, quando ao percorrê-los vamos encontrar um «S» exponencial para as concordâncias que atravessam a língua toda: terra dos Silvas, das Saudades, das Saúdes, das Sardinhas, das Senhoras, dos Soares, dos Sousas, dos Sidónios… dos Salazares, um manuelino enroscado à teia de uma consciência da vida como «Capela Imperfeita» que ao não ter tecto faz das alturas estelares uma visão aterradora. Octógonos em pedra, deitados nas lajes os mártires que aspiram nevoeiros.

Toda a sinuosidade se adapta ao espaço, contornando-o – uma manobra dançante – teme o obelisco, corta as partes contundentes, ameaça ser um lago e lança-se em oceanos. Lá chegados, as terras que fomos inventar são hoje uma panorâmica surpreendente do ventrículo luso, as cidades onde ora acontecemos parecem ainda hoje ter as “tripas de fora” nos postes de abastecimento energético, que a tripa é uma curvatura lindíssima e serpenteia cidades como uma piton iluminada. Nós não vemos isto, aliás, nós, agora tão Encobertos não olhamos quase nada e vamos melancolicamente a direito dentro de cápsulas sem préstimos e qualidades. A errância, essa grande teia, tem uma língua que propulsou, tomou cuidados, e foi em correntes de água molhar as bocas que encontrava.

E hoje, a memória do que outrora levávamos não tem voz, a nossa lembrança não tem chão, perdemos tudo ao tentar ser outros e cegos fomos ficando no intenso nevoeiro. Louvámos os charcos e calcinámos as frotas. De grande, restou-nos um certo círculo onde se tece a teia, onde se nasce para o fundo de cabeça a descoberto… e agora, que todas essas redes gravitacionais que dançavam numa estranha mas fascinante inspiração colectiva para sempre se foram, eis-nos que somos o que a ninguém lhes acontece ser: reflexos. Qualquer coisa no entanto e de novo se faz sentir, pode até coincidir com o último trago, mas não será em vão tentar pensá-lo.

Já poucos, aguardamos, cansados, nem por isso desistimos. Os ciclos são esféricos e quase sempre pela brecha que não esperávamos muda o mundo. Pode haver um senão: não estarmos aqui, mas outros tomarão os remos da ideia começada. E pela mesma razão que a língua galgou as praias por onde Velhos anunciavam desventuranças, iremos agora buscá-la mais além, nos locais onde beijamos outros. Tudo isto, e não sei em que sentido me lembra este poema de Manuel Bandeira:

“Aceitar o castigo imerecido,
Não por fraqueza mas por altivez
No tormento mais fundo o teu gemido.
Trocar num grito de ódio a quem o fez.
As delícias da carne e pensamento
Com que o instinto da espécie nos engana.
Não tremer de esperança nem de espanto
Nada pedir nem desejar, senão
A coragem de ser um novo santo
Sem fé no mundo além do mundo. E então
Morrer sem uma lágrima, que a vida
Não vale a pena e a dor de ser vivida.”

Uma língua de mar.

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