O corpo em obras

Mymosa, Lisboa, 8 Setembro

[dropcap style≠’circle’]O[/dropcap]ntem foi uma criadora de ondas, a Maria José Mauperrin (1929-2018), hoje a Lena Pantcholita, que tanto usou o bisturi na vida comunitária como no íntimo dos corpos, cuja morte descobri sem querer e logo me fez subir o escândalo à boca. Se o mês se apresenta cemitério, faça-se lugar de encontro, para trocar pedaços do que fomos, para nos refazermos em adulto contínuo, que a mesa se faz ringue e palco e cama.

Para mim, a rádio foi a banda sonora da noite, quando ainda sabia a transgressão, quando outras companhias me eram proibidas. Vejo agora: quanto aprendi, sem saber, com o «Café Concerto» da Maria José! Quem me dera que o espanto, a ironia, o bom gosto, também vertido nas entrevistas e nos textos, se tenham mantido comigo de algum modo. Quase nada sobra nas redes sociais sobre a produtora, senhora da discrição, mas, insistindo, descobrimos programas com escritores e outros criadores. Invariavelmente atirados para diante, para os futuros.

A última vez que encontrei a Helena Lopes da Silva (1949-2018), anos depois da última, fizemos o quê? Foi em lançamento do Zé Luiz [Tavares], mas serviu para nos rirmos desalmadamente. Acontecia sempre, que o seu sorriso era dos que iluminava salas. Por pudor parvo, não conto o que me sussurrou no reencontro. Desconcertou-me, o que não vai sendo fácil. Partilhámos causas, das que insistem que corpo pertence a cada qual em nome da alegria, e sou testemunha do apreço que lhe é devido com professora e cirurgiã. Ficará sempre a doer-me aquela última ceia que não fizemos.

Horta Seca, Lisboa, 13 Setembro

Discutimos antes a capa, assinada pela Elisabete [Gomes], dos SilvaDesigners. Tal como no miolo da narrativa, acaba por invocar fantasma de Camões. Não mais nos livraremos desses queridos fantasmas, Camões ou Pessoa. (Precisamos, aliás, de continuar enriquecendo livre panteão de atormentadores.) O nosso olhar converge para um centro geométrico no qual brilha livro, preso em mão expressionista, de modo pouco natural, rodeado de linhas dinâmicas que não escondem as vestes barrocas. Será o Arquivo das Confissões, essa extraordinária ideia? Será o livro desaparecido do poeta maior? Será a inveja um rectângulo? O Carlos [Morais José], que me perdoará o trazê-lo aqui, em gesto que parece fazê-lo convidado da sua própria casa, traz, com este seu «O Arquivo das Confissões – Bernardo Vasques e a Inveja», um sólido contributo para esta colecção da Arranha-céus, na qual a História se verte em histórias (ficções, recolhas, biografias, sem limite de género). Atiro para trás no prazer de ouvir o Nuno [Miguel Guedes] discorrer sobre as inúmeras qualidades deste romance, o sabor veloz da sua escrita, o recorte justo das figuras, o desenho das paisagens e ambientes, a dialogar com a inveja, «essa paixão retorcida, deusa esverdeada, aguilhão da História». Macau, aparece, mas não chega a fazer-nos suar. É que a inveja brilha e escalda no âmago do que se conta nestas páginas – afinal forradas a amarelo, cor do luxo e da inteligência, dizem. Lê-se como aventura, mas fere como ensaio.

Horta Seca, Lisboa, 20 Setembro

Corro da conversa com a Isabel [Lucas] e o Jorge [Silva], no CCB aberto em obra de rádio, ainda a tempo de assistir às marés de olhos a encher e a esvaziar a exposição «Le Palais Idéal», do Carlos Guerreiro, integrada no integrador Bairro das Artes, da Ana [Matos] e do Cláudio [Garrudo]. Não podia calhar melhor, para esta ideia que celebra o livre deambular pelas imagens, pelos sons, pelas coisas, pelas cidades, pelas gentes. Gente que entra e sai, hora após hora, ligando entre si as galerias mais distintas de bairro que já o foi mais, que precisa de linha destas para se coser. Aqui sobreviveram à experiência de percorrer de olhos e mãos alguns pedaços do mais inesperado dos nossos designers. (Será que o podemos emparedar em tal categoria?) «Durante anos de trabalho como designer e ilustrador, enfim, como artista, Carlos Guerreiro passou-se quase todo pelo scanner: velhas fotografias, mãos e pés, tudo e mais alguma coisa foi sendo convocado pelo seu desejo de samplagem. Ao fim de muitos anos de deriva, agora em espelho do que antes se afirma, ou seja, de passear como se fosse scanner pelos temas e lugares, pelas letras e sons em deriva, o Carlos dá-nos o acesso a duas ou três assoalhadas do seu Palácio Ideal: um coração habitável erguido sem outra regra que não a de deixar-se levar por olhar dos mais dispersos, pela afirmação de uma voz cava, que escava. Pinturas jamais vistas estarão de par com trabalhos antigos, na pluralidade das suas disciplinas e interesses, do jazz ao cinema, da tipografia à televisão, da moda à política, da música à banda desenhada. Fica garantida a surpresa de entrar na intimidade exaltante de um caçador-recolector de imagens. Único: é o Carlos, ponto final.»

A1, nos arredores de Coimbra, 21 Setembro

Nem queria acreditar no que lia, em andamento: um designer recusava-se ir à gráfica acompanhar um trabalho de alguma sensibilidade. Reli vezes sem conta, parado, se por acaso fosse a velocidade a desfocar os argumentos. Era mesmo só este arremedo: que não, pois não tinha nenhuma relação comercial com a dita. Lido com livros e publicações há uns bons trinta anos e nunca me tinha acontecido. Isto e deixar cair o queixo. Cada vez mais, e apesar dos egos, este mister se faz de colaborações. De duas, uma: ou despreza o seu próprio trabalho ou tem-se em grande conta. (Lembrei-me agora de outra, também contemporânea: uma qualquer alergia.)

Horta Seca, Lisboa, 26 Setembro

O contemporâneo acontece ininterruptamente neste cruzamento, rasgado pelo rosto tal nas telas, a luz passando a tinta, o azul beijando o negro, o eterno movimento do gesto, a parede desfazendo-se em vazio, o corpo em obra. Helena Almeida (1934-2018), que assina o que interessa desta página («Saída Negra»), afirmou tanto e de corpo inteiro, sem os alardes palacianos do costume, com a dúvida e a ironia das tarefas domésticas: «A minha obra é o meu corpo, o meu corpo é a minha obra».

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