Nada é óbvio nem absoluto

 

 

Mymosa, Lisboa, 19 Julho

[dropcap style=’circle’]N[/dropcap]ão me lembro da última vez que almocei sozinho, gestos dos mais anti naturais da civilização. O desatino destes dias de apocalipse que piso a tanto obriga, daí o peso acrescido da mensagem que me trouxe à tona do aquário alheado em que mergulhei: Luis García Montero acaba de ser dado como novo director do Instituto Cervantes, substituindo o querido Juan Manuel Bonet, que não reencontrei durante o seu mandato. A ausência dos óculos fez com que o colocasse em uma qualquer short list do homónimo Prémio. Ambas as situações segregam estranheza, que os nossos autores não são de frequentar prémios, ou melhor, os prémios não os visitam a eles; e os corredores do poder estão em lados opostos da cidade. Ainda assim, a notícia alegra-me, pelo que conheço do afã polémico da figura, do modo como radica em Lorca uma ética, da sua paixão pela língua, do carinho por Portugal, da generosidade que testemunhei. Sendo apenas nomeação a um cargo, estou em crer que pode sair daqui algo de bom, assim como horizontes. Melhor: tenho a certeza, pois acredito no que salta do seu O Dogmatismo É A Pressa das Ideias: «Aqui junto das dunas e dos pinheiros,/ enquanto a tarde cai/ nesta hora ampla de beleza no céu/ e faço meu sem pressa/ o vermelho livre da luz,/ penso que sou o dono do minuto que falta/ para que o sol repouse sob o mar.// Essa é a minha razão, o meu património,/ depois de tanta margem/ e de tanto horizonte,/ ser o dono do último minuto,/ do minuto que falta para dizer que sim,/ para dizer que não,/ para chegar depois ao outro lado/ de tudo o que afirmo e do que nego.// Essa é a minha razão/ contra as frases feitas e a manhã,/ enquanto a tarde cai por amor à vida,/ e nada é óbvio nem absoluto,/ e a águia que desfaz os jornais/ arrasta as palavras como peixes de prata,/ como espuma de onda/ que sobe e se matiza/ dentro do coração.» Não fecha assim, antes afirmando «esse único dogma do abraço, minha única razão, meu património.» Partilhando esse dogma único, o do abraço, aqui segue um, com o devido atraso.

Horta Seca, Lisboa, 23 Julho

Circunstância do devir: de cada vez que cai relâmpago perto sinto-o na pele como frase de jazz, desmultiplicadora de inspiração e presságio. O nascimento do Jaime, filho da Liliana [Ribeiro] e do Paulo [Moura], marca nas constelações que pisamos tantos e tão díspares princípios de viagem que justificam este queimar da alegria. Os autores não são de papel, são árvores de tantos frutos. Por cada criança que nasce, vejo surgir, na voz, no olhar, um outro pai, uma distinta mãe, baralhando a posição do céu e da terra, dos ramos e das raízes.

Horta Seca, Lisboa, 25 Agosto

Nos últimos anos, quem se atreva a escrever, a publicar e a editar, está sujeito, ao abrigo da liberdade (talvez de imprensa), ao enxovalho de julgamentos e condenações sem sombra de contraditório. Eles afirmam-se jornalistas, mas confundem código deontológico com etiqueta masturbatória; eles dizem-se críticos, mas trocam a leitura aberta pela cegueira maldosa; eles julgam-se poetas, desde que cada verso se faça degrau para o altar supremo do culto em que oficiam, o único que assegura a única e mais verdade que a verdadeira poesia; eles são editores, mas que só arriscam o himalaia do cânone, aquele que congela para sempre o tempo e as opiniões sagradas dos mortos; eles são livreiros que criticam o capitalismo aberrante, sem que nada os impeça de especular com as raridades anti-sistema. Mimetizando outros tempos e outras figuras em versão serôdia e fora de prazo, celebram a «postura crítica», mas nisso agridem, fazem execráveis ataques de carácter, cometem sem pejo a ignorância mais profunda, riem do seu próprio fel, arrotam sound bites vendendo-os como pensamento. E há quem compre, claro. Gente até que devia saber mais. Não se lhes exija coerência. Estão tão acima moralmente de todos os outros, que nenhuma das regras detestadas por escrito se lhes aplica. Estão muito fora, muito além, muito apesar, muito contra, tudo e todos, mas não sei de nenhum que tenha estado preso ou passado fome. Detestam militantemente a alegria e a festa e o único prazer que se lhes conhece está em chafurdar no ódio. Por mim, levá-los-ei a sério quando doarem o corpo à ciência para que se estude o seu inegável contributo civilizacional: de tão puros, deixaram de cagar.

Curry Cabral, Lisboa, 27 Julho

Não sou supersticioso pela óbvia razão que dá tremendo azar. Tive e estimei gata preta, senhora de muitas sortes. Adoro a parte de baixo das escadas, mesmo quando não as subo. Parto espelhos e espalho sal com displicência e descuido. Celebro muito o treze, por razão tremendíssima, e acumulo bilhetes em que me sentam, por acaso, na sobredita cadeira. Partilho com poetas de envergadura este divertimento. Como interpretar agora o facto do meu velho pai aterrar, ao fim de deambulação de meses, em cama número 13?

Horta Seca, Lisboa, 28 Julho

Parece impossível mas couberam nas nossas duas modestíssimas salas os cinquenta e nove autores de Ilustração Portuguesa. O veterano Diniz [Conefrey] comentava há pouco o caminho, desde o Salão Lisboa e outras iniciativas semelhantes, vetustas de duas décadas: «o que andámos para aqui chegar». Alguns nomes mantêm-se em estimulante laboração, mas nada impressiona mais que a riqueza de estilos e linguagens e temas e projectos. Tal selva só se atravessa sabendo onde pôr os olhos. No último canto, mesmo junto à janela, a ordem alfabética arrumou aqui as peças assinadas por Tida Siuda, polaca a residir no Porto. A janela alargou-se, melhor escrevendo, tal a frescura dos seres-formas que por ali convivem (um deles algures na página, mas outros podem ser verificados aqui: https://tinasiuda.com/). A força poética toca-me, bem como a subtileza das suas cores. Despertam gestos e palavras muito para além do óbvio.

Horta Seca, Lisboa, 2 Agosto

Eis as palavras do poeta Montero chegando ao cargo com pressuposto radical, antes mesmo de irónico presupuesto, contra a desintegração ética da sociedade: o esforço de ser bom, ainda que seja, por ora, tão pouco sexy. «Esta mañana siento la voz de don Quijote, en una de sus famosas parrafadas en homenaje a la libertad, la poesía, la dignidad o el buen gobierno, advirtiéndome sobre la responsabilidad que asumo. Yo le contesto que en mi responsabilidad se abrazan a la vez la exigencia y la ilusión. A los 60 años de edad, cuando he vivido tantos momentos diferentes de la historia de España, agradezco la oportunidad que se me da de compartir en mi oficio una vocación cívica y un tiempo nuevo para la democracia española.
Empecemos por las primeras palabras, esas que según Elsa Morante hacen del arte una apuesta contra la desintegración ética de la sociedad. El mayor reto que tenemos, desde muy diferentes perspectivas, es el esfuerzo por ser buenos, en el buen sentido de la palabra bueno, frente a los que trabajan por crear un tiempo propicio al odio. Cito, como ya sabéis, a Antonio Machado y a Ángel González.»

 

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