“Quando uma mulher sobe as escadas” – para nada -, de Mikio Naruse

[dropcap style≠’circle’]O[/dropcap] cinema japonês, que teve uma imensa influência em muito do cinema europeu, acabou por ficar reduzido a três nomes, fora do Japão, e mesmo assim restrito a cineastas: Kensi Mizogushi, Yasujiro Ozu e Akira Kurosawa (este claramente o mais conhecido e também o mais ocidental dos cineastas japoneses).

Mas há um outro realizador de extrema importância no Japão, e contemporâneo destes: Mikio Naruse. E hoje vamos ver um dos seus filmes mais famosos, Quando Uma Mulher Sobe As Escadas, de 1960. Num dos números da revista Egoísta, dedicada à política, escrevi acerca da diferença de se ser mulher. O contexto era a Antiga Grécia e uma das tragédias de Eurípides, As Troianas. As mulheres troianas estão na condição de prisioneiras devido aos seus homens terem perdido a guerra, uma guerra que não aconteceu por decisão delas, mas de seus maridos.

No filme de Naruse, Quando Uma Mulher Sobe As Escadas, 2500 anos depois de Eurípides, e numa terra e cultura bem distintas da da Grécia Antiga, encontramos uma situação que se pode considerar semelhante. As mulheres que aparecem naquele filme foram tolhidas pelo destino traçado pelos homens. Antes de mais – repetindo a guerra de Tróia – porque os homens decidiram fazer a guerra e foram derrotados, estamos na ressaca da Segunda Guerra Mundial. As oportunidades de trabalho são escassas e para as mulheres mais ainda, deixando-as numa situação próxima da das troianas da peça de Eurípides. Qualquer trabalho executado pelas mulheres era muito mal pago, muito abaixo do que se pagava aos homens. A protagonista do filme gere uma espécie de bar de alterne, em que as mulheres têm de beber e dar atenção aos homens, que aí vão gastar dinheiro. E as escadas que ela sobe para o bar são para ela como que subir ao calvário. Pois ela detesta aquilo que faz.

Escuta-se no filme, em voz off, primeiro com ela a olhar para as escadas, antes de as subir: “Eu odiava subir aquelas escadas, mais do que qualquer coisa.” E depois escuta-se, enquanto as sobe: “Mas, uma vez lá em cima, encarava o que viesse.” Fá-lo por ter ficado viúva e não ter trabalho. Mas quando o filme começa, a angústia da protagonista, Keiko Yashiro, representada pela actriz Hideko Takamine, é o tempo a passar pelo corpo. Pois muito em breve os clientes vão deixar de se interessar por ela. Ela só tem o trabalho que tem, porque é bonita, porque tem utilidade para os homens, a de ser agradável ao olhar dos homens. Mas a beleza está a passar, e Keiko tem três alternativas no seu horizonte: casar com um dos clientes, abrir um bar ou tornar-se amante de vários clientes (que é a que mais lhe repugna). Há uma tensão existencial ao longo do filme, que é a que mais importa, sem dúvida, mas ela é condicionada pela situação em que o Japão se encontra, pelo que os homens decidiram fazer – a guerra – e como o país ficou depois disso. Por outro lado, fica a claro, literalmente preto no branco, que as mulheres estão às mãos dos homens.

O destino delas depende dos caprichos deles. Decida o que decidir, e ainda que a decisão seja cumprida, Keiko Yashiro ficará sempre nas mãos dos homens. Para abrir um bar, precisa do dinheiro deles – que estão dispostos a ceder em troca dos serviços dela e não de outros serviços, como ela chegou a propor. Para casar, ainda que o conseguisse fazer, seria com alguém com quem não queria casar e ficava sujeita às vontades dele. Para se tornar amante dos clientes, é evidente que o seu destino passa literalmente pelos caprichos dos homens. Keiko Yashiro está a menos na vida. E está a menos na vida, porque nasceu mulher. Esta é a tese mais forte e radical do filme, que nos remete para a tragédia de Eurípides e nos faz pensar neste mundo. Quem precisa de dinheiro de outros nunca será livre, quer seja homem ou mulher. Mas à mulher foi sempre dada essa condição de precisar do dinheiro dos homens, de modo a mantê-las como troféus ou como utensílios. Entre uma e outra escolha, Keiko sente que sobe as escadas para nada. Sobe as escadas para deixar de ser. Para ser um brinquedo aos olhos dos outros.

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Afranio da Silva Garcia
Afranio da Silva Garcia
17 Jul 2018 11:21

Muito bom.