Faz hoje 70 anos que descolou de Macau o primeiro avião comercial a ser sequestrado por piratas do ar

Macau foi palco de um dos capítulos mais negros da história da aviação civil. No dia 16 de Julho de 1948, faz hoje 70 anos, um hidroavião da Cathay Pacific descolou do Porto Exterior e despenhou-se no estuário do Rio das Pérolas, num mergulho fatal para 25 dos 26 passageiros e tripulantes. O único sobrevivente, Wong Yu, personagem principal de uma narrativa digna de filme, ficaria para a história como cúmplice do primeiro sequestro dos anais da aviação comercial

 

 

[dropcap style≠‘circle’]À[/dropcap]s 17h da tarde de 16 de Julho de 1948, a azáfama de passageiros e tripulação do Miss Macau, um hidroavião de uma companhia aérea com apenas dois anos de vida, a Cathay Pacific, preparava-se mais um voo entre Macau e Hong Kong. Às 17h30, o Miss Macau descolava para a sua última e curta viagem, despenhando-se no estuário do Rio das Pérolas cerca de 10 minutos depois de deixar o Porto Exterior. A bordo seguiam três tripulantes e 23 passageiros, entre os quais quatro piratas do ar que acabavam de cometer o primeiro sequestro da história da aviação comercial.

A trágica história do Miss Macau envolve várias linhas narrativas num cenário fílmico. O aproveitamento de um território à sombra da Lei Internacional no período do pós-guerra, Macau, onde se fintavam restrições ao comércio de ouro; a falta de segurança na indústria da aviação comercial, que dava os primeiros passos; e o convívio entre grandes fortunas e o crime organizado num contexto socioeconómico de enorme disparidade de riqueza.

À altura, a aviação civil dava os primeiros tímidos saltos em termos de comunicações, ou seja, não havia como entrar em contacto com a aeronave. Como tal, por volta das 19 horas, quando o Miss Macau já devia ter aterrado na ex-colónia britânica, começou a instalar-se entre a equipa de terra da Cathay Pacific a ideia de que algo poderia ter corrido mal. Mas ainda não sabiam que o Miss Macau se havia despenhado e que, por volta das 21h15, um barco de pesca tinha retirado da água uma pessoa inconsciente, que mais tarde se confirmaria ser Wong Yu. Os pescadores levaram o ferido de regresso a Macau e contaram às autoridades que tinham visto um avião despenhar-se sem conseguirem, no entanto, dizer exactamente onde o Miss Macau deu um fatal mergulho no estuário do Rio das Pérolas.

No dia seguinte, uma equipa de buscas internacional, composta pela guarda marítima de Macau, as autoridades de imigração marítima chinesas e barcos de particulares procuraram o Miss Macau. As operações de busca no ar foram conduzidas por aviões da Força Aérea Real britânica, da Marinha norte-americana e do outro avião da Cathay que tentaram avistar vestígios dos destroços.

 

Piratas do ar

O primeiro cadáver foi encontrado por um vapor que ligava Hong Kong a Macau, quase dois dias depois do avião se ter despenhado. Os destroços do Miss Macau foram encontrados perto da ilha de Mau Chau, a cerca de 16 quilómetros nordeste de Macau, perto daquela que seria a sua rota normal em direcção a Lantau.

Com a descoberta da fuselagem do avião a trama adensou-se, uma vez que foram descobertos cartuchos usados de pistola e corpos com balas. A única pessoa que poderia saber a verdade do que acontecera no final da tarde de 16 de Julho de 1948 estava em recuperação numa cama do Hospital Conde de São Januário, bastante combalido e com a perna e braço direitos fracturados.

De forma a arrancar a verdade de Wong Yu, as autoridades policiais de Macau montaram um esquema de vigilância digno de uma peça de teatro. Retiraram todos os doentes da enfermaria onde o suspeito estava internado e substituíram-nos por polícias que, inclusive, recebiam visitas de familiares. Aos poucos a verdade veio ao de cima, depois de um período em que Wong Yu se recusou falar, de acordo com o relato feito no livro “Beyond Lion Rock: The Story of Cathay Pacific Airways”, de Gavin Young.

Young refere que Wong Yu demonstrava sinais de incoerência no discurso e que as autoridades esconderam um gravador na sua cama. No entanto, um conhecido gangster da região viria a ser determinante nas investigações, tomando um papel principal no teatro de enfermaria que havia sido montado para levar o pirata a falar.  De acordo com o livro “Syd’s Last Pirate”, do capitão Charles ‘Chic’ Eather, que chegou a pilotar o Miss Macau, o gangster cujo nome não é mencionado entrou na enfermaria com um falso ferimento de bala e a sua presença levou a que o pirata se sentisse à vontade para contar o que sabia de forma vaidosa. E assim, veio ao de cima o plano do grupo de piratas, que pretendia desviar o Miss Macau para um lugar remoto, assaltar a carga do avião e os passageiros e pedir resgate aos seus familiares.

 

Plano da Guia

Eather teceu algumas considerações e detalhes do esquema. “O plano de desviar o Miss Macau foi delineado por Chio Tok, Chio Kei Mun e Chio Cheong, três habitantes da vila de Nam Mun, na costa sudeste da Ilha de Tao Mun”, Doumen, Zhuhai. “Depois de venderem as parcelas de terreno para plantação de arroz, juntaram 3000 dólares HK. Tok, o líder do gang que aprendera a pilotar aviões anfíbios em Manila, desenhou o plano. A ideia era simples, mais do que a sua execução. O grupo de piratas compraria passagens e embarcaria no Miss Macau. Uma vez no ar, passariam à acção subjugando a tripulação, com Tok a assumir o comando da aeronave, enquanto os restantes piratas tomariam conta dos passageiros”, lê-se no livro do piloto da Cathay Pacific. Porém, o esquema tinha duas falhas. Kei Mun era viciado em ópio, o que o tornava pouco fiável e uma vez sequestrado o avião os piratas não sabiam muito bem para onde o levar. Foi aí que entrou Wong Yu, um agricultor de arroz de 24 anos que vivia na mesma ilha que os restantes cúmplices e que tinha um profundo conhecimento da costa do estuário do Rio das Pérolas. De acordo com o livro de Eather, Wong conhecia a região de Seong Chao “como a palma da sua mão” e fez algumas sugestões de possíveis locais para o hidroavião aterrar e para se levar a cabo as negociações do resgate.

E assim, o agricultor juntou-se ao bando na condição de não participar na tomada do avião pela força e caso o desvio do avião desse para o torto, terá ficado acordado que Wong poderia seguir para Hong Kong como um passageiro normal. A sua única função seria guiar o piloto para um local de aterragem, uma vez tomado o Miss Macau.

Alegadamente, o plano terá nascido em casa de uma mulher que hospedou o gang, mais precisamente no nº 39 da Rua Coelho do Amaral, na Colina da Guia, descrito na altura no South China Morning Post como “um famoso bairro de piratas de Macau”.

No dia do sequestro, depois de uma refeição ligeira, os quatro piratas rumaram à Avenida de Almeida Ribeiro para comprar roupas ao estilo europeu, antes de embarcarem no Miss Macau.

 

O vil ouro

Além dos resgates, os piratas tinham em mente a carga transportada no Miss Macau. Wong Chung-ping, um dos passageiros milionários do voo fatídico, tinha uma fortuna avaliada em cerca de 3 milhões de dólares americanos. O magnata era um dos donos da Hang Shun, uma firma estabelecida em Macau dedicada ao mercado do ouro. De acordo com o jornal Wah Kiu Yat Po, o milionário embarcara no Miss Macau com 3 mil barras de ouro na bagagem.

No dia 26 de Julho, o jornal China Mail trazia na manchete “Milionários chineses em desastre de avião”, seguido da entrada do texto onde se lia “acto de pirataria confirmado por fontes oficiais”. De acordo com o jornal, teriam embarcado no Miss Macau quatro milionários chineses. A esposa de um deles traria consigo meio milhão de dólares de Hong Kong.

Este tipo de carga preciosa era uma constante a bordo dos poucos voos que o Miss Macau fez.

No ano de 1944, o Acordo Bretton Woods era assinado com o objectivo de regular relações monetárias entre os países signatários, em particular o mercado do ouro na sequência do fim da 2ª Grande Guerra Mundial e da tentativa de travar a disseminação de ouro nazi. Hong Kong assinou o acordo, mas Macau ficou de fora, tornando o enclave com administração portuguesa numa Meca para o negócio do metal precioso. A Cathay Pacific aproveitou a oportunidade de negócio e criou a sucursal charter Macao Air Transport Company (Matco), dirigida pelo empresário macaense Pedro José Lobo. A companhia charter tinha ao seu serviço um único avião: o Miss Macau.

No final da década de 1940, o ouro chegava a Hong Kong vindo, sobretudo, de Xangai e chegava a Macau para ser vendido e para financiar, entre outras causas, os esforço militares de Chiang Kai-shek na guerra civil chinesa. A oportunidade de negócio levou a que fossem feitas duas viagens diárias entre Macau e Hong Kong, transportando passageiros ou ouro, nunca ambas as coisas ao mesmo tempo.

 

Mãos lavadas

Sem mais nenhum sobrevivente e contando apenas com o relato de Wong Yu, que sempre manteve a teoria de que era apenas uma espécie de guia para os verdadeiros piratas, chegara a hora de se fazer justiça. Um dos primeiros problemas para a resolução do caso prendeu-se com o facto de Macau e Hong Kong não terem em vigor legislação que penalizasse pirataria a bordo de uma aeronave. Assim começou a atribulada viagem jurídica de Wong, entalado entre três sistemas legais diferentes.

O julgamento do único sobrevivente do Miss Macau estava marcado para o final de Setembro de 1948, no edifício do Antigo Tribunal. “Em Outubro, o comissário da polícia, Capitão Paletti, informou as autoridades de Hong Kong que Macau estava pronto para entregar o confessado pirata do ar, Wong Yu, para julgamento”. Na altura, foi reportado que Paletti sugeriu que fosse imputado ao antigo agricultor de arroz o crime de homicídio, mas que o Tribunal de Macau se considerou incompetente para julgar o caso por este ter acontecido fora da sua jurisdição, ou seja, o crime havia sido cometido a bordo de uma aeronave de Hong Kong que sobrevoava águas internacionais. A tomada de posição das autoridades portuguesas foi recebida com desagrado na colónia britânica, onde o procurador-geral considerou não admissível as provas para julgar Wong.

Pelo meio, também a justiça chinesa se recusou a julgar o pirata envolvido no primeiro sequestro de um voo comercial na história da aviação.

Perdido num jurídico triângulo das Bermudas, Wong Yu acabou por ser solto no dia 11 de Junho de 1951, depois de passar três anos preso sem ter sido submetido a julgamento. A partir deste ponto, a história de Wong torna-se difícil de seguir, submergindo algures entre o mito e o relato pouco preciso de múltiplas fontes. Diz-se que foi libertado nas Portas do Cerco e prontamente assassinado pelas autoridades chinesas que na altura decapitavam piratas sem qualquer tipo de julgamento.

Terminava assim, em mistério, uma trama digna de um guião de cinema e que colocou Macau na história da aviação civil. Entre as vítimas mortais, as operações de busca conseguiram recuperar os cadáveres de 10 pessoas, três deles os piratas responsáveis pela tragédia. Os restantes corpos nunca foram encontrados e tiveram como local de descanso final as águas do estuário do Rio das Pérolas.

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