O peso do braço

[dropcap style≠’circle’]É[/dropcap] frequente ouvirmos louvores acerca do trabalho e dos méritos de quem sobe a pulso na vida com pouco mais do que o suor do rosto. Nem o Cristiano Ronaldo escapa às loas que se tecem sobre o esforço e as suas recompensas. Como o português de César Monteiro, Cristiano Ronaldo não nasceu Cristiano Ronaldo, tornou-se Cristiano Ronaldo. E isso fá-lo ainda mais extraordinário. Melhor que o Messi.

Este louvor do trabalho e do sucesso que lhe corresponde ou deve corresponder é uma das pedras basilares da sociedade capitalista. Sem ele e sem a promessa de mobilidade social que lhe está associada, seria difícil manter um sistema de cariz democrático a funcionar sem sobressaltos de maior. As pessoas continuam a ir a jogo porque existe – nem que seja apenas em teoria – a possibilidade de lhes sair a sorte grande. Mas para tal, e para começar, têm de se esforçar. Arduamente.

Nos primeiros anos da longa carreira contributiva a que estamos votados, não nos poupamos a esforços. Entusiasmados com a ilusão do caminho glorioso que se abre à nossa frente, cumprimos diligentemente aquilo que é esperado de nós e mais, muito mais. O credo diz que o esforço há-de ser recompensado.

Reparamos nalgumas inconsistências a que damos pouca importância: um tipo que entra para um lugar para o qual não tem currículo adequado ou suficiente, mas que mostra ter uma relação inesperadamente afável com aquele director de departamento que não passa cartucho a ninguém; um aumento concedido àquele sujeito cuja única característica de monta é dizer que sim entusiasticamente a qualquer ideia, por mais trôpega que seja, que os seus superiores atirem para a mesa.

Com o tempo, vamos percebendo as minudências pelas quais se rege o jogo empresarial, todo ele muito menos limpo e transparente do que o publicitado. As inconsistências deixam de ser excepções à regra e passam a ser, elas próprias, as normas sub-reptícias que regem o jogo. A competência, o profissionalismo e, sobretudo, o trabalho árduo, ou não são suficientes para assegurar a progressão de carreira antecipada ou são mesmo obstáculos a que tal aconteça. Enquanto isso, vicejam os bajuladores, os atrevidos e, muito especialmente, os chicos-espertos. Damos conta, muitas vezes assaz tarde, de estarmos a viver num mundo ao contrário, um mundo que se descreve a si próprio como um paradigma de justiça e equidade mas que, na verdade, se vive exactamente ao contrário, e damos por nós a pensar em como é que este mundo se aguenta e se tem aguentado durante tanto tempo, como é que não só se parece aguentar, com um crescimento económico apenas interrompido por correcções de mercado ou pela inevitável ganância financeira a fazer os seus estragos, como parece florescer malgrado o substrato malsão de que é composto. E damos conta, inevitavelmente, de que esta coisa da meritocracia é uma espécie de Disney – com os seus príncipes e as suas princesas – para adultos. Nesse momento, a juventude e a energia ficaram pelo caminho. E é com isso que o sistema conta: com a nossa ilusão e o nosso vigor de jovens e com a nossa resignação e placidez de velhos. É assim que a máquina funciona e continua a funcionar.

Li algures que numa daquelas conferências sobre o futuro da economia mundial e acerca da inteligência artificial e das suas consequências um dos assistentes, um empresário de renome com fábricas um pouco por todo o mundo, interrompeu o orador quando este discursava, empolgado, sobre um futuro livre do baraço do trabalho, um futuro em que cada um estivesse livre de labutar a vida toda a troco de umas migalhas de pão: “e que farão as pessoas sem os seus empregos?”, perguntou, indignado. “Outras coisas”, respondeu o orador, “tudo o que quiserem e que nunca puderam fazer”. “Isso nunca vai acontecer”, contrapôs o empresário. Não, por eles isso nunca vai acontecer.

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