O nada esvazia

[dropcap style=’circle’] A [/dropcap] negação na vida não é apenas lógica. Fazemos a experiência do “não” de diversos modos. Logicamente podemos perceber que não nega um predicado dito de um sujeito: o quadro não é preto, o tampo da mesa não é branco. Pode também negar a existência ou a disponibilidade de um sujeito: já não existem dinossauros, já não há leite, no sentido em que dizemos que acabou o leite na dispensa. A forma como a lógica e a linguagem pensa a negação é complexa porque a operação de negação se complexa conforme os horizontes semânticos que se constituem. É possível que não chova é diferente de é provável que não chova e diferente ainda de é necessário que chova. A complexificação do pensamento modal implica todo um conjunto de correlações entre o ser necessário e o ser possível. Mas também podemos trazer quantificadores à colação. É possível que nem todas as pessoas tenho os mesmos gostos. Não é possível que algum ser humano não seja mortal. A predicação negativa, a negação da existência absoluta de um objecto expresso como sujeito gramatical, a negação modal e a negação quantificada enquanto tais e individualmente e numa relação entre si dá para podermos perceber a densidade do operador de negação. Se acrescentarmos ainda a dupla negação e compreendermos como a afirmação pode daí resultar, então a análise terá de sempre sempre também semântica e pragmática e não apenas sintática.

Há, assim, muitas maneiras de dizer “não”. Há muitas maneiras de expressar a negação. Com pronomes: ninguém, nenhures. Com advérbios: nunca, nenhures.

A antiguidade pensa a “negação” não apenas como apofático (enunciado declarativo negativo, como demos alguns exemplos lá em cima) mas também como privação (sterêsis). A cegueira é uma negação essencial da possiblidade da visão. Ter olhos não quer dizer ter a possiblidade da visão. Há coisas em sonhos e ficção que não são vistas com os olhos. Toda a forma de mutilação que resulte de amputação não é uma mera negação. O corpo humano é um todo que sem partes deixa identificar diversas impossibilidades, de outro modo possíveis se não estivesse privado delas. Se a mesa não tiver tampo ou não tiver pernas, se a porta não tiver trinco ou não estiver encaixada, se a estante ou a tenda não estão montadas, sucede não apenas uma negação lógica mas a compreensão da impossibilidade de uma possibilidade.

E, contudo, a vida ensina-nos outras formas de negação bem mais profundas, apesar da complexidade “lógica” daquelas que enunciamos.

Mais abissal do que a mera negação que se adequa ao pensamento do que não existe e não há é a dureza da contrariedade. A abominação da solidão é duríssima e não anulável. É agudíssima. Em toda a recusa, encontramos uma dor impiedosa. Toda a interdição e proibição nos faz ver o que não é para nós, quem não é para nós. Faz-nos ver também quem nós nunca seremos. Em toda a carência, haverá mais amargura? A interdição, a abominação, a rejeição, a contrariedade, não são ausências de registo de possibilidade, mas possibilidades impossibilitantes. Trazem simultaneamente consigo, na verdade da noite da angústia, o que corresponde ao sentido do ser na sua possibilidade de problematização extrema. O que é possível é arrancado ao nada.

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