António Conceição Júnior, autor e artista | O choro do ferro

“Rumo ao apogeu militar dos Descobrimentos” é o tema da palestra de António Conceição Júnior que tem lugar no próximo dia 12 de Julho, pelas 18h30, na Fundação Rui Cunha. O interesse do autor e artista local pela armaria é algo que se tem vindo a aprofundar. As razões contemplam, não só o seu testemunho histórico, mas também o valor estético e o carácter existencial. Paralelamente, Conceição Júnior têm-se dedicado à concepção de espadas
FOTO: Gonçalo Lobo Pinheiro

[dropcap]C[/dropcap]omo é que surgiu o seu interesse pela armaria? Foi um interesse estético aliado à cultura?
Decisivamente, sim. A história da humanidade carrega uma grande componente bélica, tão importante que Sun Tzu e Maquiavel dedicaram-lhe as obras, com o mesmo título, “A Arte da Guerra”. A guerra é uma parte importante de todos os períodos da história da humanidade. A armaria é, como já referia Sun Tzu, um dos “principais artigos utilizados pelo exército”, usado tanto para fins ofensivos como defensivos nesta “questão de vital importância para o Estado”. As guerras são travadas por homens, usando armamento, que muitas vezes é o único testemunho material do engenho tecnológico das culturas ou civilizações. Numa perspectiva histórica, e perante estas expressões culturais, conferimos beleza a estes instrumentos de guerra proveniente da decoração que os imbuía de poder e status simbólico. Podem e devem ser vistos como uma parte da busca humana pela perfeição. A armaria que me interessa, enquanto objecto estético e histórico, é hoje anacrónica, tendo sido no seu tempo necessário para moldar e defender culturas, civilizações. Estes objectos, portadores de grande criatividade e engenho, reflectem o desenvolvimento tecnológico das culturas que os criaram e estão imbuídos de beleza.

Tem um interesse particular por espadas. Como apareceu este gosto?
As espadas surgiram pelo interesse histórico e cultural destas peças. Comecei a intervir em fóruns, sobretudo para contextualizar historicamente a armaria e reflectir sobre o processo alquímico do aço, especialmente o praticado por alfagemes contemporâneos, cuja forma de expressão artística deveria ser reconhecida – exemplo da joalharia. Este interesse continuou, com a visita, ainda nos anos de 1990, à maior colecção de armaria portuguesa propriedade do professor Rainer Daehnhardt e que o próprio me mostrou. Em 1993, tive oportunidade de organizar, na Galeria do então Leal Senado, uma exposição de Armaria Portuguesa, contando com a colaboração do Museu Militar de Lisboa. Em 2005 e 2006, já no Museu de Arte de Macau, concebi e organizei duas grandes exposições: “Senhores do Fogo”, a primeira exposição, a nível mundial, de obras de alfagemes contemporâneos, e “História do Aço na Ásia Oriental”, também a primeira a nível mundial a reunir peças de diferentes épocas provenientes da China, Coreia, Japão, Filipinas e Sudeste Asiático Continental.

«Precisei de saber o que era uma lâmina forjada depois de várias dobras até uma sanmai (três camadas), que é uma lâmina de aço com um alto teor de carbono, “adornada” nas duas faces com outro aço mais macio, que age como um pára-choques. Isto conferia uma enorme beleza às lâminas. Assisti, durante a noite, ao nascimento do aço – faz-se sempre no escuro para se poder ver a verdadeira transparência que a incandescência confere ao ferro. Depois de estar em brasa – Yang – e ser mergulhado na água do seu oposto – Yin -, pude vislumbrar a transcendência alquímica da lâmina.»

Como é que começou a conceber espadas?
Nos fóruns que frequentava, passei a ter algum reconhecimento, tendo começado a surgir inúmeros pedidos de coleccionadores. Para desenhar é preciso conhecer o objecto que se representa. Deste modo, precisei de saber como as espadas eram feitas. Visitei, então, dois alfagemes americanos e pude presenciar o modo como as espadas mais complexas são feitas. Precisei de saber o que era uma lâmina forjada depois de várias dobras até uma sanmai (três camadas), que é uma lâmina de aço com um alto teor de carbono, “adornada” nas duas faces com outro aço mais macio, que age como um pára-choques. Isto conferia uma enorme beleza às lâminas. Assisti, durante a noite, ao nascimento do aço – faz-se sempre no escuro para se poder ver a verdadeira transparência que a incandescência confere ao ferro. Depois de estar em brasa – Yang – e ser mergulhado na água do seu oposto – Yin -, pude vislumbrar a transcendência alquímica da lâmina. O nascimento do aço de uma espada é um processo muito especial, em que se ouve o próprio choro do ferro a transformar-se em martensite e pearlite. É um verdadeiro parto. Percebi, nesse momento, porque é que os fabricantes de espadas japoneses são simultaneamente sacerdotes xintoístas e porque cada peça (koshirae) de uma katana tem um nome, tal como na China a designação de cada membro de uma família indica o grau de parentesco e a sua proveniência paterna ou materna. Em África, algumas tribos mantinham os seus alfagemes fora da tribo e inteiros, isto é, não circuncidados, para que pudessem operar deveras a transformação do ferro em aço. Então, já mais municiado, concebi e desenhei espadas conforme a orientação e gosto dos clientes. Muitas eram ao estilo japonês, contudo não me esquivava de lhes conferir nomes de outras culturas, como Atziluth.

Há, além do simbolismo, toda uma esfera desconhecida destes objectos.
As pessoas geralmente têm medo de espadas. Preconceitos da ignorância ou o síndrome da espada de Dâmocles. A espada de Dâmocles, por exemplo, é representada dependurada por um fio sobre a nossa cabeça. O síndrome que lhe está associado é o receio de alguém que, por exemplo, tendo-se curado de um processo oncológico, possa ter uma recaída. Mas há mais símbolos e espadas famosas. A Excalibur é o exemplo-mito-lenda da espada que só poderá ser retirada da rocha por alguém devidamente qualificado para o fazer. A espada Flamejante é simbolicamente manejada por um arcanjo para combater o mal. No caso japonês existe a Katsujin-ken, a espada que dá vida, isto é, o mito da espada protectora. Os koan (paradoxos) Zen são interessantíssimos. Se, por outro lado, lhe relembrar que a bainha de uma espada se diz saya em japonês, então voltamos ao masculino e ao feminino e, assim, à inteireza da espada quando embainhada. Devo dizer que a concepção de uma espada, actualmente, implica um conhecimento profundo e intuitivo dos diversos intervenientes, tais como o autor da lâmina, o polidor, se lâmina de estilo japonês, o fabricante da bainha, do punho, da guarda, do pomo, etc, etc. É, muitas vezes, uma cadeia de produção artesanal de altíssima qualidade.

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