Adepto fanático

[dropcap style=’circle’] T [/dropcap] oda a tensão do nervo, dentes que rangem sôfrega antecipação, palpitações e suores que encharcam o corpo. Eu sou a terminação neural, a negação absoluta da racionalidade e da calma. Sou ímpeto, impulso, reacção exacerbada, guerra sem tréguas, aquilo que há de mais primário na natureza humana.

Sou fenómeno social, o esplendor das massas, o coro em uníssono, o choro e a explosão de glória. Vivo permanentemente num estado de exaltação, inquietude, depressão e euforia. Não tenho um minuto de descanso nos 90 que me trazem à vida, em total sintonia com o drama que se desenrola em campo. Existo para aquele período, para o momento no espaço e tempo, sou a incansável exigência de suor e sangue, músculo no limite, devoção concreta que corresponda ao meu fervor emocional. Peço inteira entrega física, enquanto me empanturro com fritos, sentado a beber uma caneca de cerveja e a fumar um cigarro.

Sou a equipa, a selecção, sou a camisola e as cores que fazem a minha identidade. As vitórias são minhas e as derrotas são deles. O meu ónus é selectivo, sem fúrias, completamente livre de tormentos de consciência. O meu capital é o meu sofrimento, aquilo que entrego durante 90 minutos de apaixonado culto. Sou todos os outros como eu, a unidade que se perde no colectivo monocromático, uma gota num oceano de fanatismo. Existo em mania, em paixão cega, sou o mais exigente e lunático dos amantes que se perdeu em trivialidades. Não amo uma ideia ou princípio, não amo mulheres ou homens. Amo a pertença ao capricho, a algo maior que eu, amo a loucura de nada controlar e de tudo reclamar. Amo viver no fio da navalha, no detalhe de um centímetro da linha de golo, amo profundamente o desvario, a inconstância, a veleidade, a fantasia. Sou a mais pura das violências expressa num colectivo de pessoas. Amo e odeio com força equivalente.

Em simultâneo, sou o pleno confronto com o oposto do meu clube, faço-me gente na antítese, na negação dos adversários. Pessoas que são exactamente como eu sou tornam-se alvo a abater se envergarem uma camisola diferente. Podem viver no mesmo bairro que eu, até no mesmo prédio, trabalhar comigo, mas se proferem uma devoção madrasta são inimigos para mim.

Sou aspereza e bestialidade, sou filho da selvajaria, sou um ultra-humano, o super-adepto que derrama o sangue pela equipa. O meu mundo é uma batalha campal contra todos os outros. Sou um guerreiro num jogo de trincheiras. Quando que me desloco a outros campos mostro a minha força, o meu orgulho, pela violência. Sou soqueiras e very-lights, sou delinquência suburbana tornada kosher, o resultado do abandono escolar, da guetização social. Só me realizo no grupo, na mentalidade de matilha. Sou um insignificante grão num areal de mediocridade e pequeno delito. Sou o sal da terra, o filho do bairro, o seguidor cego, o homem-médio, pai de família.

Ao mesmo tempo sou a cor e os cânticos que enchem os estádios, enquanto os adeptos suaves roem as unhas em silêncio. Sou a serpente que jamais será amestrada e que estará sempre presente na vida do clube.

Sou monarca num condado de caos, o meu brasão é uma tocha a arder. O meu reino é a bancada, a caixa policial, as entranhas do estádio, a periferia da vida, a antítese do desporto, a hipérbole da barbárie. Quero gritar golo e incendiar o mundo.

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