ARTM faz 25 anos. “Ninguém devia ir para a prisão por consumo de droga”, diz Augusto Nogueira

O tratamento deve ser a prioridade sobre tudo o resto. Quem o defende é o presidente da Associação de Reabilitação de Toxicodependentes de Macau (ARTM), para quem ninguém deve ir para a prisão por consumir droga. Em entrevista ao HM, Augusto Nogueira faz um balanço da actividade da organização que, há dez anos, lançou um programa de troca de seringas que contribuiu para a diminuição da ocorrência de novos casos de VIH

 

A ARTM, que preside desde 2000, é herdeira da Ser-Oriente, que se estabeleceu em Macau há 25 anos. Quais foram as principais conquistas?

Foram muitas. Em 2000/2001 um dos primeiros objectivos foi, desde logo, obter o subsídio do Instituto de Acção Social [IAS], porque nunca tínhamos tido. Era um dos pontos mais importantes para continuarmos a trabalhar em Macau, porque era impensável continuarmos a bater porta a porta como antigamente a pedir apoios para a nossa subsistência. Depois foi a própria estabilização da ARTM porque, inicialmente, o subsídio era reduzido. Dava para pagar a renda e pouco mais, pelo que foram tempos de angústia e até estivemos quase a fechar portas, mas travámos uma luta enorme para termos um apoio maior e, ao fim e ao cabo, para que acreditassem que estávamos aqui para ficar. Quando o IAS aumenta o subsídio a ARTM começa a crescer, a criar mais programas, a abrir centros. Depois, salvo erro em 2004, numa altura em que há um grande aumento de casos de VIH [Vírus da Imunodeficiência Humana] tendo a utilização de drogas injectáveis como via de transmissão, a ARTM foi convidada a integrar a Comissão de Luta Contra a SIDA. Em 2008, introduz o programa de distribuição de seringas e abre um segundo departamento para apoiar quem participa no programa de metadona [do IAS]. Outro passo importante foi a criação, em 2010, de um centro de tratamento feminino e, no ano seguinte, do espaço Be Cool, dedicado aos mais jovens, que tem estado a funcionar muito bem e é responsável pela prevenção nas escolas para a comunidade não falante de chinês. Já em 2016 abrimos estas instalações [em Ká-Hó] que abrangem outras adições para além da toxicodependência. Além disso, há todo esse trabalho que temos vindo a desenvolver no plano internacional, como a participação em várias conferências e a organização, no final do ano passado, da conferência mundial da Federação das Organizações Não-Governamentais para a Prevenção de Droga e Abuso de Substâncias.

Que resultados alcançou o programa de troca de seringas desde que foi lançado há dez anos? Tem contribuído significativamente para baixar novos casos de VIH, correcto?

Exactamente. É um dos maiores marcos da ARTM. É algo que deve deixar Macau orgulhoso, porque graças ao programa de troca de seringas e do de metadona já vamos no terceiro ano consecutivo sem novas infecções por VIH entre os consumidores de droga. Em dez anos, recolhemos 316.648 seringas, registando uma taxa de retorno na ordem dos 80 por cento. Em 2017, por exemplo, distribuímos 23 mil e recolhemos 18 mil, mas o número tem sido flutuante, algo que tem que ver com diversos factores, tais como a existência de menos consumidores de heroína – em linha com a tendência mundial – ou o trabalho da polícia. Por outro lado, como agora há um maior entendimento por parte dos juízes de que faz parte dos esforços de protecção da saúde pública devido ao VIH, os consumidores também sentem maior segurança em ir buscar e devolver as seringas, mas tal não é sinónimo de maior consumo.

Qual é o actual ponto de situação do consumo de droga em Macau?

Tem-se mantido estável. Olhando para os dados, acho que a única coisa que se pode realçar – porque não era comum – é um aumento do consumo de cocaína. Em sentido inverso, decresceu o consumo de ketamina. Já o de ‘ice’ sofreu uma subida residual, mas, em geral, o cenário é estável.

No Sistema de Registo Central dos Toxicodependentes do IAS, encontram-se referenciados cerca de 600 toxicodependentes, mas este número tem por base a declaração voluntária de quem solicita ajuda, junto das instituições oficiais ou organizações não-governamentais, e também os dados da polícia ou dos tribunais. Qual é o verdadeiro cenário?

Obviamente, esse número está abaixo da realidade, mas penso que Macau não é, de facto, um lugar com um elevado consumo de droga. 

Há sensivelmente um ano, entrou em vigor uma alteração à lei que agravou as penas para o consumo até um ano de prisão. Quais têm sido as repercussões?

Não disponho de muitos dados. A única coisa que posso dizer é que o número de pessoas que temos é idêntico ao que tínhamos antes da entrada em vigor da nova lei. Não sentimos que tenha existido uma grande diferença – nem positiva, nem negativa. No entanto, temos casos de pessoas que vão para a prisão por causa do consumo, isto quando devia ser dada prioridade ao tratamento. Se a mão pesada resultasse, muitos países já não tinham consumidores de droga, não é? Actualmente, mesmo na China o consumo é uma sanção administrativa, em que as pessoas são enviadas para a desintoxicação por um período de duas semanas, mas não vão presas, nem ficam com cadastro.

Algo que sucede em Macau…

Sim, esse é outro problema que temos aqui, porque estamos a enviar pessoas muito jovens para a prisão, que vão ficar com cadastro e que, depois, vão ter enormes dificuldades em arranjar emprego e, portanto, em se reinserirem na sociedade. Estamos a falar, por exemplo, de jovens que têm sido condenados a alguns meses [de cadeia] por consumo e a penas de quatro a cinco anos por tráfico de quantidades irrisórias [de estupefacientes].

Quais são os principais desafios com que a ARTM se depara neste momento?

A nossa missão é ajudar as pessoas a reabilitarem-se do problema da toxicodependência, mas é bastante importante que haja a noção de que o tratamento tem que ser prioritário sobre tudo o resto. Gostávamos imenso que houvesse o entendimento de que ninguém devia ir para a prisão por consumir droga. Custa-nos muito ter pessoas dentro do centro que têm, por vezes, de ir a tribunal por casos de consumo e o tribunal insistir em enviá-las para a prisão. No fundo, estamos a tentar ajudar essas pessoas e acabamos por ver o nosso trabalho a ser deitado ao lixo. Está estatisticamente provado que existe um elevado número de recaídas após a saída da prisão, uma situação que tem que ver, obviamente, com o facto de a pessoa não estar curada. Neste sentido, um dos cavalos de batalha da ARTM é mostrar que o tratamento é possível e é uma realidade, e existem infra-estruturas suficientes e com qualidade, com pessoas capazes e qualificadas. Enviar para a prisão não é a solução e não é, aliás, a directriz que está a ser seguida em todo o mundo, porque estamos a falar de pessoas que necessitam de ajuda. É óbvio que vai haver sempre quem vá persistir nos seus pequenos delitos, mas é como tudo na vida: há àqueles que à primeira conseguem fazer o tratamento e outros que demoram mais tempo, mas isso não quer dizer que não haja esperança. A nossa luta é, portanto, tentar fazer com que haja uma percepção diferente fazendo ver que estas pessoas necessitam de apoio, que o tratamento resulta e que a prisão deveria ser a última das soluções.

A ARTM faculta algum tipo de apoio na prisão?

Continuamos a dar apoio aos que estiveram aqui no centro e a outros que conhecemos, porque deram o nosso nome por não terem mais ninguém, com psicólogos a realizarem visitas periodicamente. A nossa coordenadora da parte feminina, inclusive, visita muitas mulheres e tem conseguido que muitas raparigas que saem da prisão venham de imediato para aqui. Dentro da prisão também temos um programa para os estrangeiros, incluindo portugueses, para ajudar a prevenir recaídas e também englobando um aspecto bastante importante que é o da redução de danos.

Quantas pessoas procuraram tratamento na ARTM e qual o universo de recursos humanos de que dispõem?

Desde 1999 foram cerca de 600 as pessoas que passaram pelo programa de tratamento de 12 meses. Já no de troca de seringas temos 369 pessoas registadas e 76 no de apoio ao programa de manutenção de metadona [do IAS]. Em termos de recursos humanos, contamos com 49 funcionários, incluindo psicólogos, assistentes sociais ou monitores. 

Este centro de Ká-Hó abriu em 2016 com a particularidade de estar direccionada também para outros tipos de dependências além da toxicodependência, como o alcoolismo ou o vício do jogo. Tem havido procura nestas novas valências?

Neste momento, temos três pessoas com problemas de alcoolismo e, no passado, tivemos casos de vício de jogo, mas actualmente não temos. Neste momento, estamos a preparar-nos para prestar apoio a vítimas de violência doméstica e, inclusive, já fomos a Hong Kong para ver como funcionam as instituições.

Que projectos ou iniciativas tem a ARTM actualmente em mãos?

A ARTM está envolvida numa ‘task force’ formada por instituições da sociedade civil no âmbito do Comité de Viena para as Organizações Não Governamentais no âmbito da Política de Drogas [VNGOC, na sigla inglesa], em que temos a responsabilidade da Ásia. Para o ano, iremos apresentar sugestões para a sessão especial da Assembleia-geral das Nações Unidas para a revisão das convenções da droga. Já em Macau, dado que o programa de troca de seringas faz dez anos, vamos realizar, a 15 de Junho, uma miniconferência com três oradores, incluindo da UNAIDS [programa de combate ao VIH/SIDA da ONU] e da Organização Mundial de Saúde que vão falar dos benefícios do programa.

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