Activismo | Na China, a censura tira poder ao movimento #metoo

Lijia Zhang trabalhou numa fábrica e aprendeu inglês sozinha até se tornar escritora. A autora do romance “Lotus”, que fala sobre a prostituição na China, disse ontem no Rota das Letras que a censura na internet faz com que o movimento #metoo não tenha ainda grande expressão no país. Zhang lamenta a fraca participação das mulheres na política

 

[dropcap style≠’circle’]A[/dropcap] sua avó foi prostituta e foi sujeita à prática dos pés de lótus, a tradição chinesa de amarrar os pés para moldar a sua forma. A sua mãe passou a adolescência no período da Revolução Cultural e trabalhou numa fábrica estatal. Ela, Lijia Zhang, teve melhor sorte, num destino construído com as suas próprias mãos. Trabalhadora numa fábrica, como tantas outras mulheres, esforçou-se por aprender inglês e conseguiu lançar-se na carreira de escritora e é, hoje em dia, uma das autoras chinesas que mais colabora com os media internacionais. O seu romance de estreia, intitulado “Lotus”, fala da prostituição na China.

Convidada do festival literário Rota das Letras, Lijia Zhang falou ontem sobre o papel da mulher chinesa na sociedade contemporânea, e não teve dúvidas em afirmar de que o movimento #metoo, surgido na internet após as acusações de assédio sexual em Hollywood, não tem mais expressão no continente porque a censura na internet não deixa.

“Devido às restrições impostas pelo Governo não há um grande movimento #metoo na China. Algumas mulheres têm falado muito sobre isso, têm levantado a questão.” Além de muitos websites não estarem disponíveis na China, há também o facto do assédio sexual e igualdade entre sexos não estar, sequer, na agenda política.

“O Governo não quer implementar este assunto, quer ter a sua própria agenda com assuntos onde se sente confortável. Há alguns anos, cinco mulheres tentaram protestar contra o assédio sexual em locais públicos, e foram presas pela polícia”, exemplificou a autora, que não esquece o facto das mulheres terem uma baixa presença na política, incluindo nos principais órgãos do Governo e do Partido Comunista Chinês (PCC).

“Um dos problemas é a baixa participação das mulheres na política. Nas aldeias é possível votar, mas apenas dois a três por cento dos que ocupam cargos de topo são mulheres. Há ainda uma grande confusão em relação a esse assunto e pensa-se que as mulheres não devem ter um papel além da família, e que não têm visão. Na Assembleia Popular Nacional há uma baixa participação de mulheres, e no Politburo só existem as vozes dos homens. Infelizmente, na sociedade civil, esse tema também não tem estado na agenda”, apontou.

Apesar disso, a escritora afirmou que têm surgido alguns movimentos sociais em torno desta questão. “Há muitas questões relacionadas com a igualdade de género na China, graças à reforma e à abertura, e também se nota um activismo relacionado com esta matéria. Em 2012, houve um protesto contra a violência doméstica, por exemplo. Os movimentos activistas vêm de baixo, são espontâneos.”

Natalidade baixa

No que diz respeito à igualdade entre sexos, a autora foi questionada sobre o impacto que a abolição da política do filho único poderá ter nas famílias, numa altura em que é cada vez mais difícil, para as mulheres na China, terem trabalho durante a gravidez.

“Um dos problemas é que antes o Governo tinha essa responsabilidade [de controlo da natalidade], mas agora depende de cada empresa. As mulheres grávidas têm muito mais dificuldade em obter emprego, porque algumas empresas não querem assumir essa despesa da licença de maternidade no futuro. Essa é uma das razões pelas quais as mulheres agora não querem ter um segundo filho.”

Além disso, há também um maior anseio pela independência. “Não só é mais caro ter filhos como há também o facto de as mulheres de classe média quererem viver para si mesmas, não querem ter uma vida de servidão como teve a minha avó. Já não encaram o casamento e os filhos como a única via.”

Lijia Zhang recordou que as mulheres passaram a ter mais oportunidades nos anos 80, na época de abertura e reformas económicas levadas a cabo pelo presidente Deng Xiaoping. No período da Revolução Cultural havia uma espécie de igualdade entre sexos, à luz de doutrina maoísta. Foi neste período que a mãe de Lijia foi educada.

“O PCC trouxe uma maior esperança ao país, e uma das primeiras medidas adoptadas neste período foi o fim da prática dos pés de lótus, o fim das concubinas e maior acesso das mulheres à educação e ao emprego. A minha mãe teve a sorte de obter um trabalho numa empresa estatal, onde desempenhava um trabalho essencialmente masculino. Mas havia uma espécie de igualdade entre sexos, que negava a diferença entre homens e mulheres. A mulher modelo deveria vestir-se como um homem, parecer um homem.”

Avó inspiradora

Não foi por acaso que Lijia Zhang decidiu começar a escrever sobre prostituição. Tudo começou quando, em 1998, soube pela mãe que a sua avó tinha sido vendida, aos 14 anos, para um prostíbulo.

À semelhança de muitas outras meninas da sua idade, a avó de Lijia Zhang havia sido submetida à prática dos pés de lótus [em que os pés eram dobrados até terem um máximo de dez centímetros de comprimento, ficando deformados para sempre e com os ossos partidos]. Enquanto prostituta conheceu o marido, que a comprou.

Em 1949, os comunistas instauram a República Popular da China (RPC) e a prostituição passa a ser proibida, algo que se mantém até aos dias de hoje.

“Desde então que me tornei algo obsessiva com o tema da prostituição porque sempre imaginei como teria sido a vida da minha avó nesse período. Alguns meses depois de descobrir esse segredo viajei para Shenzen em trabalho e descobri um grupo de raparigas e percebi que vinham de zonas pobres na China e que muitas delas trabalhavam em fábricas. Foi uma importante janela para perceber as mudanças sociais, porque esse é uma das grandes problemáticas que a China enfrenta nos dias de hoje: a migração do campo para as grandes cidades e a crescente desigualdade entre homens e mulheres.”

Lijia Zhang descobriu que muitas das prostitutas na China são-no porque são obrigadas ou porque precisam de dinheiro. “A minha avó foi vendida para ser prostituta, e hoje em dia muitas das mulheres são prostitutas por opção, mas muitas vezes são forçadas a fazê-lo, ou porque são trabalhadoras com baixos salários, ou porque são vítimas de violência doméstica.”

O trabalho de Lijia Zhang confunde-se muitas vezes com o de Leslie Chang, autora do livro “Factory Girls: From Village to City in a Changing China”. Zhang foi, ela própria, uma dessas “factory girls”, e durante o processo de pesquisa para o seu livro percebeu que muitas delas acabam por recorrer à prostituição por não terem outra escolha.

“Algumas das prostitutas também trabalham na linha de produção e têm vidas muito duras, com salários baixos. Então também trabalham em casas de massagens, onde ganham muito mais. Há uma tentação pelo dinheiro.”

Na fase em que trabalhava na fábrica, e em que “odiava” a sua vida, Lijia Zhang conseguiu lutar em prol de uma existência melhor. “Comecei sozinha a aprender inglês, foi um processo bastante lento. Aprender outro idioma mudou a minha vida, porque de certa forma abriu-me os horizontes, e actualmente vivo da escrita.”

“Um ponto interessante é que falar diferentes línguas trouxe ao de cima vários aspectos da minha personalidade. Quando estava na fábrica via a BBC de forma obsessiva, para tentar falar com sotaque e para fingir que era sofisticada (risos). Costuma dizer-se que quando aprendemos uma nova língua ficamos com uma nova alma, e acho que foi isso que aconteceu”, rematou.

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