Duas fábulas sobre lembrar e esquecer

03/02/2018

[dropcap style≠’circle’]O[/dropcap] calor vara o corpo, goteja pelas costas. Bebo uma caneca em dois tragos e peço outra.

Na mesa em frente à minha uma ruiva magra como um galgo sofre a fustigação de uma negra de grande envergadura, que lhe quer mostrar como fala bem o inglês e lhe despeja à fraca figura parágrafos sobre parágrafos, sem tomar o fôlego. Para a outra aquele ímpeto é um verdadeiro apedrejamento e equilibra-se como pode, cilindrada. Conheceram-se pela Net e é a primeira vez que se encontram. A ruiva chegou de Joanesburgo, veio visitar a amiga. A moçambicana decidiu-se a tomar a ruiva como cunhada e martela-a com o extenso rol das qualidades dos irmãos. Numa pressão que a paralisa. Ao fim de quarenta minutos a negra, faz-lhe um reparo: Mas estamos aqui há uma hora e ainda não sei nada de ti.

A ruiva balbucia qualquer coisa, timidamente. Antes de acabar a terceira frase a outra atalha: Deixa lá, o melhor é irmos para casa, temos de preparar o teu quarto. Mas primeiro deixa-me fazer uma oração pela nossa amizade. Uma oração? – pergunta a pobre, desconcertada. Uma oração. Nós somos muito religiosos. Não te importas? Não… – gagueja a ruiva. Óptimo…

Mete as mãos em prece e abre a torneira: Oh Lord, agradeço-te por nos teres trazido esta irmã, por nos brindares com a sua amizade como o maná no deserto, e que, oh Lord, ela encontre no nosso lar o seu refúgio e a inspiração para superar as provações que a vida lhe dará, mas, Oh Lord, sê suave e benevolente com ela, e com o meu irmão Jacques que alimenta muitas esperanças nesta amizade, e Oh Lord, não tragas tormentas onde os caminhos são de flores para colher… Oh Lord faz com que a Jessica nunca mais se esqueça de nós…

A oração prossegue infindável, por dez, quinze minutos. A Jessica está um feixe de vergonha, quer já esquecer os «oh Lord» que a amiga percute, a triste ideia de ter vindo. Quando a amiga acaba, salta da cadeira no mesmo lance e arrasta-a. Só lhe falta pôr a coleira.

Uma das empregadas está siderada. Uma miúda dos seus vinte anos, com tudo intacto. Entreolhamo-nos, ela ri-se: Que bom, ainda haver pessoas assim. Bom, teríamos de saber mais qualquer coisinha, pode ser muito boa na oração e ser uma grande, grande, pecadora…- minimizo. Não… brinca, vê-se que é uma cristã… E isso tem uma grande importância? Para mim, sim – diz. Então qual é a sua igreja… A Igreja Universal – responde-me. Ah, uma vez assisti a um dos vossos cultos… Onde? No Cinema África, está a ver ao tempo… Então está cá há muito tempo. Eu, vivo cá há treze anos… Não me diga que agora vou ver sempre esta cara-linda… A cara-linda é comigo? – insisto, surpreso. Claro. Sai-me de jacto: Mas você julga que não sei o que é uma ruína? Retorque: Cada idade tem a sua beleza…

Já sabe tudo sobre o comércio de Deus. Não me hei-de esquecer de voltar.

05/02/2018

Um fox terrier com três patas. O Tripé. Mordeu-me duas vezes na bochecha esquerda. A de baixo, entenda-se. Lembro-me porque era o cão do Spencer, um cabo-verdiano que era um diabrete com a bola. O talhante Dias vaticinou, Este rapaz está destinado ao Benfica.

Aos catorze redobrou-se a aliança: o Spencer entrou no Benfica. Foi uma festa no bairro e abriu-se o champanhe.

Lembro-me que o pai do Adriano era embarcadiço e a mãe – uma mulata com dengue – começou a ter uns casos. Constava. Tudo se abafava, à mãe da futura estrela do Benfica perdoava-se tudo.

Lembro-me da primeira vez que nos zangámos. O Victor Hugo, my best friend, desentendeu-se com ele e o Spencer deu-lhe um empurrão que o fez cair desamparado, partindo o braço.

Lembro-me que no instante em que o reencontrámos, no bar do cinema, há sete anos que não falávamos.

O Victor Hugo cochilava ao meu lado com os diálogos rebarbativos do Ingmar Bergman. Ao intervalo quis dar de frosque. Fomos ao bar esgrimir argumentos. Foi aí que o encontrámos.

Jogava no Braga, no Benfica fora barrado pelo Chalana e mudara-se para o norte. Tivera duas épocas de vulto, mas agora estava lesionado. Tornou-se evidente que teria de rever o filme noutra ocasião.

Arrastou-nos para uma discoteca, em frente à Lisnave. Aí passámos a pente fino as recordações comuns, decilitro a decilitro. Com um senão que foi espalhando as metástases: as pequenas incidências, os ângulos de vista sobre os episódios vividos em comum dividiam-nos em tudo. Enfim, tudo quanto marcara o Spencer, não nos causara mossa, impressão, não recordávamos, e vice-versa. Vivêramos duas vidas paralelas e instalava-se o nevoeiro. Ele, pelo seu lado, não se lembrava do “acidente” em que partira o braço ao Victor Hugo, «não me lembro, juro…», e emborcava o seu quinto whisky. Tínhamo-nos afastado tanto? E estávamos a caminho da segunda garrafa de whisky.

O Adriano, mandou vir outra a garrafa, que ele pagaria, pois estávamos tesos. Eram os 500 contos que ele se gabara de ganhar contra os 10 do Victor Hugo na Lisnave salvaguardavam-nos de quaisquer hesitações. Só que ele insistiu em continuar a desfilar as suas lembranças e nós a disfarçarmos as lacunas com um olho na miúda da pista.

De repente levantou-se um burburinho na porta e o Spencer julga reconhecer a voz de um patrício e foi espreitar a confusão. Nós, aliviados, comentávamos o desacerto do reencontro. Bebemos mais meia garrafa, antes de começarmos a suspeitar que ele não voltava. Mais tesos que o Tripé, e com oito contos de despesas.

Um ano depois, a sair de casa, reencontro-o a estacionar o Mustang à entrada do prédio da mãe. Dou-lhe um abraço, chamo-lhe sacaninha e pico-o pela «banhada». Ele ouve a queixa, mede a situação, saboreia os pormenores e sentencia, secamente, Oh, pá, não me lembro de nada, juro!

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