Impressões de um bárbaro do sul

[dropcap style≠’circle’]E[/dropcap]ste texto não é sobre esse objecto de qualidade singular que é uma película de cinema, mas sobre algumas impressões sensoriais e reflexivas nesta mais recente passagem no território da RAEM. Registo de viagem que afinal é quase sempre próximo do a-e-i-o-u da sintaxe do cinema, travelling, panorâmica (horizontal, vertical), plano fixo, escala de enquadramento, a que se junta a exploração da rede cromática do visível e o universo sonoro e, no caso, a meteorologia, bem como essa casa de tudo, o tempo, esse escultor de infindáveis e invisíveis braços.

É certo que todo o regresso a um lugar onde se já esteve é sempre uma perda de espontaneidade, surpresa, e muitas das vezes frescura.

Sobre Macau, escreveu o ex-embaixador de Portugal em Pequim, João de Deus Ramos:

“Dos cerca de seis milénios da história da humanidade, a China entra pelo menos nos últimos quatro. E, caso, único, só ela, ao longo desse tempo, não sofreu soluções de descontinuidade na sua evolução como civilização e cultura, sempre igual a si mesma, sempre percorrendo a mesma linha evolutiva. Olhando para os quatro mil anos da História da China, para essa vasta unidade de que os chineses tem bem consciência, vemos que as expedições marítimas de Zheng He aconteceram num passado psicologicamente bem recente, o equivalente para os portugueses, em termos de percepção da duração, ao tempo da queda da monarquia em 1910. A percepção do ‘meio-caminho histórico’ para os Chineses, está em torno da dinastia Han, da altura em que Cristo andou pela terra. Mas, para nós portugueses, a viagem do Vasco da Gama está no centro temporal do nosso percurso. Assim, enquanto nós olhamos para a viagem à Índia de 1497 como um evento bem longe no tempo, os chineses intuem as viagens de Zheng He como acontecimentos da época moderna, quase contemporânea. Ignorar estas realidades falseia, à partida, olhares que se lancem sobre as viagens chinesas e portuguesas, numa perspectiva não apenas de comparação, mas sobretudo de abordagem conjunta. Vale a pena quedarmo-nos um pouco no sentido que pode ter a ‘aceleração’ do presente, tendo como contraponto a relativa ‘desaceleração’ do passado. . .

“Macau não é fácil de ‘explicar’… A cidade do Nome de Deus sobreviveu a mudanças dinásticas, de regime e a revoluções, em Portugal e na China, a crises económicas tremendas, à concupiscência das potências, a duas Guerras Mundiais, a confrontos militares navais e terrestres, a actos de banditismo e de pirataria e a episódios que, normalmente, teriam posto termo à ligação do território a Portugal. Provável era que Macau tivesse acabado algures em meados do séc. XVII; improvável, que perdurasse por mais de quatro séculos.”

Macau continua e vai continuar, agora, desde o início do séc. XXI, com administração pelas suas gentes e soberania Chinesa. Na verdade, são os registos das complexas práticas referentes ao exercício da soberania por parte da administração portuguesa, esse exercício da soberania quase sempre foi formal e informalmente partilhado com o mandarinato próximo, imperador, e governos da república de 1911, ou de 1949 quando da constituição da RPC. Um exercício com a sabedoria do bambu ( phyllostachys), dobrando-se segundo a direção dos ventos mas permanecendo firme no lugar de crescimento.

É curioso o facto da transição administrativa de Macau, corresponder a um momento em que globalmente os centros de poder financeiro, económico, comercial, tendem a deslocar-se do Ocidente para o Oriente. Sendo certo que Macau foi pioneira na sua qualidade de porto marítimo aberto ao comércio do mundo no processo de globalização contemporâneo, é de alguma forma uma cidade com identidade proto-global, o que é uma outra forma de dizer cidade multicultural na sua matriz vivencial e identitária.

A identidade da RAEM, na qual as marcas da europa através de Portugal são incontornáveis, parece integrar-se movimento do que se pode chamar afirmações de identidade locais dentro da grande China, ou seja na afirmação do direito a ser diferente, ter uma identidade própria, dentro da identidade da grande China.

A percepção nesta visita é a de que, tal como na mais recente cinematografia de Godart, o multiculturalismo maioritariamente vivido na cidade acontece por camadas, estratos sociais étnicos demográficos que vivem sobrepostos no mesmo território em comunidades pouco abertas para fora de si mesmas. É uma percepção, que em muito resulta do desconhecimento da língua Chinesa, mas também da realidade social observada.

Por falar em língua, Macau parece mais ter tido como potência administrante o reino de sua majestade do que Portugal. Inglês todos falam, Português, só na gravação indicativa das paragens nos autocarros se consegue ouvir, grosso modo claro.

Na cidade o contraste entre a hipermodernidade e um parque habitacional em decadência parece ter aumentado, provavelmente em razão de espera do investimento em negócio do imobiliário. Para um estrangeiro cineasta há sempre encanto nas marcas do tempo impressas na falência das velhas paredes, guardiãs de antigos sonhos, quotidianos, vidas, mas revela também uma certa forma como a cidade se vê e se trabalha a si mesma e, atendendo aos números do encaixe financeiro, talvez fosse de esperar um outro cuidado com os velhos muros.

É muito provável que seja de mim e não da realidade sempre tangencial com que me tenho cruzado, talvez mesmo da perca de fervor entusiástico que a repetição de lugares também provoca, mas tenho sentido uma alegria débil, ou quase a falta dela, na comunidade portuguesa a viver no território. O Ano Novo Chinês está aí. Onde anda a alegria?

 

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