A medicina personalizada

[dropcap style≠‘circle’]A[/dropcap] medicina moderna, para além de todas as suas maravilhas, apresenta uma grande nódoa. Ainda que, os avanços científicos e os novos tratamentos milagrosos sejam anunciados diariamente, os médicos sabem que mesmo as drogas mais eficazes do seu arsenal não funcionam para grandes sectores da população. As drogas comummente prescritas, por exemplo, para tratar transtornos como a depressão, asma e diabetes são ineficazes para cerca de 30 a 40 por cento das pessoas a quem são prescritas e a doenças difíceis de tratar, como a artrite, a doença de Alzheimer e o cancro. A proporção da população que não vê benefício de um tratamento específico aumenta de 50 a 75 por cento.

O problema decorre de como os tratamentos são desenvolvidos. Tradicionalmente, uma droga é aprovada para uso se funcionar para um bom número de pessoas com sintomas semelhantes em um teste de drogas, e não são feitas perguntas nem dadas respostas sobre as pessoas no teste, e que não responderam positivamente ao tratamento. Quando a droga é então autorizada e prescrita massivamente à população, sem qualquer surpresa, existem muitas pessoas, como as do teste, que descobrem que a mais recente cura milagrosa não lhes resolve a situação. Este sistema de descoberta de drogas que abarca todos, embora tenha ajudado a descobrir os medicamentos mais importantes do século XX, é cada vez mais sentido como ineficaz, desactualizado e perigoso.

Tal significa que os medicamentos são desenvolvidos para fazerem efeito na pessoa média, quando de facto todos, incluindo as nossas doenças e respostas às drogas são únicos. Muitas drogas são ineficazes para grandes sectores da população, mas tem de se considerar que também podem causar reacções adversas graves a outras pessoas. Felizmente, uma abordagem completamente nova da medicina está a ganhar cada vez mais adesões. À medida que se aprende mais sobre como as pessoas diferem geneticamente, os médicos estão a adaptar conselhos de saúde e tratamentos para pessoas individualizadas ao invés de ser massivamente para populações.

A medicina personalizada, também conhecida como medicina de precisão usa os dados genéticos de um paciente, e outros dados sobre a sua saúde a nível molecular, para obter o melhor tratamento para as pessoas com um perfil genético similar. Somos tentados a pensar que os nossos genes determinam a nossa altura, cor dos olhos ou se temos um distúrbio genético. A combinação dos nossos genes aquando do nascimento afecta segundo as revelações científicas, o nosso desenvolvimento e saúde de muitas formas subtis, ao longo das nossas vidas. A probabilidade de termos recebido certas doenças à medida que envelhecemos, a forma como metabolizamos os alimentos e a nossa reacção a certos medicamentos, são influenciados pelos genes que temos. Tendo em conta o que se sabe sobre os genes, tomar tal questionamento, pode parecer um pouco óbvio, mas só foi possível na última década, graças ao incrível progresso que foi feito na tecnologia de sequenciação de ADN.

Quando o genoma humano foi primeiro descodificado em 2003, foi necessário uma década de esforços de cooperação internacional e custou cerca de três triliões de dólares. Após quinze anos, o sequenciamento do genoma de uma pessoa pode ser conhecido em menos de cinquenta horas, ao invés de anos, e pode custar menos de mil dólares. Tal significa que informações genéticas, estão mais disponíveis aos médicos e pesquisadores que desenvolvem tratamentos do que alguma vez se imaginou. A área onde a nova abordagem personalizada à medicina tem tido o maior impacto, é a oncologia, ou o tratamento do cancro. O tratamento do cancro do pulmão, especialmente, é visto como uma grande história de sucesso da medicina de precisão.

Os médicos, durante anos, ficaram intrigados com o motivo de apenas cerca de 10 por cento dos pacientes com cancro do pulmão responderem a uma droga comum ao tratamento, conhecida como “TKIs (inibidores da tirosina-quinase)” que interrompe o crescimento de um tumor. No final da primeira década do nosso século, quando os pesquisadores conseguiram analisar o ADN de tumores de pacientes, descobriram que a droga só funcionava em pessoas cujas células cancerosas tinham uma mutação particular em um gene conhecido como “Receptor do Factor de Crescimento Epidérmico (EGFR na sigla inglesa).”

A mutação faz que as células cresçam de forma incontrolável e os TKIs bloqueiam esse efeito, diminuindo o tumor. Mas, em pacientes cujos tumores têm origens genéticas diferentes, o tratamento com TKIs resultará em uma barreira com efeitos colaterais prejudiciais sem possibilidades de sucesso. Eventualmente, os diferentes genes no centro de diferentes cancros do pulmão foram revelados, e todo o processo para diagnosticar o cancro do pulmão mudou. Os cancros segundo os cientistas não são simplesmente classificados por onde e como crescem e o que parecem ao exame do microscópio. Em vez disso, são testados por mutações genéticas, e as opções de tratamento são escolhidas em conformidade.

Mesmo quando os tumores mutam durante o tratamento e desenvolvem resistência a medicamentos específicos de genes, os médicos podem acompanhar a mudança genética e escolher outro alvo. Os tratamentos de cancro personalizados ainda mais sofisticados estão no horizonte, como a imunoterapia, que toma as células imunes do paciente e as reprograma para atacar as células cancerosas. As células imunes, conhecidas como células T CAR, são extraídas do paciente e geneticamente modificadas no laboratório, para que reconheçam os marcadores moleculares exactos que crescem nas células cancerosas do paciente e, em seguida, são injectadas de volta ao corpo para atacar o tumor.

A “Administração de Alimentos e Medicamentos dos Estados Unidos (FDA na sigla inglesa)”, aprovou uma forma desse tratamento, em Agosto de 2017, após resultados impressionantes em ensaios clínicos. A medicina personalizada também está a contribuir de forma importante para a segurança das drogas. A possibilidade de uma reacção adversa grave a um medicamento pode parecer raro, mas é, incrivelmente, a quarta principal causa de morte nos Estados Unidos e representa cerca de 7 por cento de todas as admissões hospitalares. Mais uma vez, o problema é causado pela tendência de tentar tratar grandes grupos de pessoas muito distintas entre si, da mesma forma. Um teste genético simples pode mostrar os genes-chave que tornam algumas pessoas hipersensíveis a certos medicamentos, ou se alguém metaboliza medicamentos tão rapidamente que necessitam de uma dose mais elevada.

A abordagem, conhecida como farmacogenómica, ainda está longe de ser comum em hospitais e cirurgias de clínica geral, mas um novo suporte lógico está em desenvolvimento, que ajudará os médicos a tomar decisões de prescrição e dosagem com base no perfil genético específico de um paciente. É possível um dia ver os farmacêuticos verificarem os genes na farmácia antes de entregar os medicamentos. A medicina personalizada não é apenas sobre genética. O medicamento do futuro será dirigido pela geração e interpretação de muitos tipos de dados de nível molecular sobre indivíduos, capturados com um nível de precisão nunca antes possível.

Existe tecnologia que pode descrever o genoma, análise proteómica (níveis de proteína), perfil metabólico e o microbioma de cada pessoa, em detalhes, a um custo cada vez mais acessível. A análise de genes é informativa, mas os genes não mudam ao longo do tempo e, portanto, não podem dizer se a pessoa realmente possui uma determinada doença ou se o seu tratamento está a funcionar. As proteínas ou metabólitos no sangue proporcionam uma imagem em tempo real de que o corpo está a lutar, ou se as drogas que recebeu estão a fazer o que deveriam.

A partir de uma simples amostra de sangue, os cientistas podem detectar as primeiras pistas químicas de uma enorme variedade de doenças comuns, conhecidas como biomarcadores, muito antes de se tornarem evidentes quaisquer sintomas físicos. No cancro do pâncreas, por exemplo, muitos pacientes só são diagnosticados quando os sintomas começam a mostrar-se e a doença se encontra em estado avançado. O cancro pode, de facto, ter crescido de forma assintomática até há quinze anos, libertando biomarcadores reveladores que poderiam ser detectados com testes moleculares.

A combinação de computação poderosa, vasta base de dados de dados genéticos e biomédicos e um maior número de geneticistas qualificados que trabalham em ambientes de saúde, tem o poder de revolucionar verdadeiramente a medicina. A prevenção de precisão é passar dos cuidados de saúde baseados em doença para medidas preventivas, estudando as doenças antes de acontecerem ou enquanto se encontram em um estado inicial. Trata-se de uma monitorização e triagem mais regulares, para pessoas com alta susceptibilidade para certas doenças. Em casos extremos, descobriram-se que as pessoas apresentam distúrbios que aumentam a taxa de mutação do ADN, ou causam mecanismos defeituosos de reparação do ADN, tornando-os susceptíveis de desenvolver múltiplos tipos de cancro ao longo da vida, e são colocados em uma terapia que pode impedir o aparecimento do cancro.

Os tratamentos similares conhecidos como vacinas contra o cancro, terapias feitas sob medida que ajudam as pessoas a desenvolver imunidade específica ao cancro, estão actualmente em progresso para um conjunto de diferentes doenças, incluindo o cancro do rim, oral e dos ovários, demonstrando ser a oncologia de precisão no seu melhor desempenho. A medicina personalizada começa a ter um impacto em muitas outras áreas das doenças. Os cientistas revelaram em 2017, que a forma mais comum e perigosa de leucemia, são onze doenças distintas que respondem de forma muito diferente ao tratamento. Nos pacientes com HIV e hepatite C, os dados genómicos retirados do doente e dos seus vírus, podem ajudar os médicos a decidir sobre uma combinação de medicamentos que atinja a raiz específica da doença e é menos provável que cause efeitos colaterais na pessoa, tornando-se importante, porque os efeitos colaterais prejudiciais podem levar alguns pacientes a parar a toma dos medicamentos.

A abordagem das duas vertentes reduziu as taxas de mortalidade do HIV, em até 90 por cento no Canadá, e na doença de Alzheimer, que é notoriamente difícil de tratar, a análise genética é um subtipo revelador de que é mais provável que responda a certos tratamentos. Além disso, os médicos podem iniciar o tratamento mais cedo, graças às subtis pistas químicas que confirmam a doença antes que os sintomas sejam evidentes. Mas, apesar de toda essa pesquisa emocionante e alguns sucessos notáveis, o facto é que poucos pacientes que entram nos sistemas de saúde dos países desenvolvidos terão acesso à análise biomolecular especializada necessária para personalizar o seu tratamento. Afora dos departamentos de oncologia, os grandes sistemas de saúde não estão configurados para colectar e analisar ainda, dados biomoleculares para cada paciente.

A medicina personalizada é frequentemente usada como último recurso, ou para as poucas pessoas com sorte seleccionadas para ensaios clínicos. A proporção da população que teve o seu genoma sequenciado é pequena, mas está a começar a mudar. É significativo no Reino Unido, o “Projecto dos 100.000 Genomas”. O projecto começou a sequenciar genomas de cerca de setenta mil pessoas com cancro ou uma doença rara, além das suas famílias, e em 2017, o “Sistema Nacional de Saúde” inglês, publicou a “Estratégia de Medicina Personalizada” para ajudar a impulsionar a adopção de abordagens de precisão em mais áreas do serviço de saúde. Nos Estados Unidos a maior unidade de dados de medicina de precisão do mundo foi anunciada pelo ex-presidente Americano, Barack Obama, em 2015, e que pretende inscrever e sequenciar dados genéticos de um milhão de voluntários até 2020.

É de considerar que cerca de 40 por cento das drogas aprovadas em 2002, os Estados Unidos, personalizaram de alguma forma, em 2017, o que significa que o tratamento vem com um teste genético complementar para garantir que seja precisamente orientado. No cancro, a mudança está a acontecer, pois as empresas irão sequenciar o genoma de um tumor e decidir o melhor tratamento. No entanto, a adopção de medicamentos personalizados em todas as áreas dos cuidados de saúde, exigirá grandes reformas na forma como os serviços são contratados e estruturados. A grande ênfase na medicina personalizada é a medicina preventiva e o tratamento, tendo em conta que os sistemas de saúde nunca custearam essa área antes. Será uma grande mudança e exigirá muitas pessoas que não são apenas médicos, mas treinadas em análises biomoleculares. Os usuários iniciais, serão pessoas que terão de pagar as despesas.

É de prever que nas próximas décadas as visitas ao médico possam ser substituídas por actualizações frequentes de conselheiros moleculares, que acompanham os níveis de saúde através de análises periódicas dos biomarcadores no sangue, sugerindo tratamentos adequados aos genes, com os pacientes a enviar as suas amostras de sangue pela internet para análise (como acontece com o Hilab no Brasil) e consulta pelo “Skype”. “A análise molecular será tão perturbadora para os médicos, pois assumirá o processo de diagnóstico e prescrição. O médico será o treinador de saúde, uma pessoa cujo trabalho é manter as pessoas saudáveis e procurar sinais do que necessita para caminhar com mais frequência ou mudar a dieta.

As infra-estruturas nos sistemas de saúde centram-se em torno da bioinformática e da medicina genética, mas parece inevitável que o remédio do futuro se baseie em torno dos genes. O sequenciamento do genoma está a ficar cada vez mais barato e só é necessário fazer uma vez. Quando os sistemas estiverem a funcionar, fornecerão informações importantes sempre que as pessoas tiverem de visitar o médico e para o resto da vida.

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