Natal

[dropcap style≠’circle’]H[/dropcap]á uma vibração muito especial na época natalícia. Consoante as idades da vida sentimos a sua metamorfose. Pode começar logo com a contagem decrescente 24 dias antes, nos países em que se calendariza o Advento. Pode ser a partir do período dos feriados, como nos Estados Unidos, a começar com o Dia de Acção de Graças. Lembro-me de ter vivido aspectos diferentes da altura natalícia de forma mais ou menos distendida, com mais ou menos neve.

Há sempre uma vibração disposicional que forma a atmosfera como as pessoas do mundo cristão vivem a época natalícia e, pese embora o politicamente correcto- deseja-se festas felizes e não feliz Natal- a época é transversal a todos os habitantes do ocidente. De cada vez que a época se aproxima, qualquer que seja o calendário que a marca, há uma projecção automática para Natais passados. A época é celebrada em família como é assinalada nas escolas. E para pessoas que nunca saíram da escola como eu, o ano lectivo contempla as férias do Natal como fim do primeiro semestre. O fundo dos tempos ressoa com os seus acordes. O primeiro Natal de que há memória vem até nós.

Na geografia da nossa existência está localizado na casa onde o passamos e a casa onde o passamos está numa zona de Lisboa. Lembro-me da noite luminosa em Alcântara. Talvez seja uma das primeiras noites de que me lembro. Sem saber bem que a Avenida de Ceuta iria dar onde dá, ou que o 31 da Armada antecipava a Infante Santo ou que o rio iria dar à marginal e ao Atlântico. Mas lembro-me dessa noite inaugural, provavelmente antes do jantar de ceia. Lembro-me do dia seguinte e de presentes embrulhados com fitas brilhantes. As lembranças efectivas são de “partes da cidade”, “fases do Natal” (véspera e dia). Mas a envolvência era de uma natureza completamente diferente. Talvez porque as pessoas trazem consigo os seus Natais.

Um Natal é o que é e o que devia ser, como se trouxesse consigo o rosto da vida como nós gostaríamos que fosse. O Natal traz a vibração da vida possível que nós gostaríamos de ter, como nós gostaríamos de ser. E somos assim ou não. É a ficção de nós a sermos bons. E não só: o farisaísmo de querermos ser bons e merecedores. Ora o humano é quem é: humano. Tal pode querer dizer que não nascemos com nenhuma hominização. Somos influenciados pela ficção de toda a gente e não pela vida real das pessoas. Nós somos a nossa realidade e a ficção de quem gostaríamos de ser e de como a vida poderia ter sido. Na infância, contudo, a vida está por ser e os Natais têm como referência, durante essas semanas, a antecipação, a vida em redor de árvores de Natal, presépios, canções de Natal, filmes, contos e livros. Ah! E toda a gente estava viva e não tínhamos ainda tido tempo para as grandes decepções das nossas vidas.

Na juventude o Natal mantém ainda a traça dos natais da infância, mas começam a ser infames de alguma maneira. Há os enfeites de Natal na cidade, a casa das vésperas é a mesma, mas estamos a caminho para nós: da indefinição da infância ou da juventude indeterminada, estamos numa aproximação de nós próprios. O Natal metamorfoseia-se. O contraste entre possibilidade de ficção e brutalidade da vida acentua-se. Há os outros aí e a época das festas nos lugares de diversão são favorecidos. Pomos gorros de pai Natal e saímos à noite como se fosse uma noite só diferente, porque abriram-se as hostilidades. Lembro-me de vir de férias da Alemanha e era jantares todas as noites, muitas vezes com as mesmas pessoas mas com grupos diferentes. Tudo iria terminar algures depois da passagem do ano. Mas o Natal era etílico.

Agora, os natais sobrevivem a outros natais, tal como muitos de nós sobrevivem com os escombros da infância, promessas de juventude. Sobretudo, com quem não somos como adultos e já não importa muita coisa, a não ser fazer tudo para a vida dos mais velhos não piorar mais do que já é. Só agora os natais são futuros. O espectro da passagem de natais fora do seu acontecimento, como se fosse possível escolher uma nova religião ou ser colhido por um outro Deus sem Natal. Ou então, sermos e ficarmos completamente esquecidos de possibilidades inaugurais: de que a vida é possível, de que seremos como gostaríamos de ser.

Mas como podemos sobreviver à maior de todas as decepções: à decepção do amor que era a grande esperança?

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