Predador de sombras

Bica, Lisboa, 12 Dezembro

[dropcap style≠’circle’]A[/dropcap]rrefeceu mais o bairro, aquele que mora nas traseiras dos que passam a arrastar olhos nos azulejos, dos que desaprenderam a ver apesar das lentes e dos ecrãs e dos guias. O meu bairro de íntimas escarpas e abruptos declives deixou descer de vez o Sô Manel e assim se perderá bastante mais do que as sortes que revendia e praticava com o afinco dos perdedores crónicos. Foram-se os sorrisos rasgados, as festas no Pantufa, que o tratava como pai ganindo ausências, desfilava com canino orgulho trajado à Benfica, quando não alinhava pela selecção, e não dispensava um gole ou dois na mine. O meu bairro de sol pelas esquinas perdeu o fervor da flash interview praticada com o subtil acinte dos velhos parceiros que, apesar das cores contrárias, nunca se perdem do terreno de jogo: o coração.

Mymosa, Lisboa, 13 Dezembro

Um jantar casual com o Bruno [de Almeida] e o Alentejo reentrou na nossa vida tal chuva de estrelas. Sob aquele céu, a solidão parece impossível. Acontece amiúde este horizonte de sul, apesar de outras paragens do afecto, mas celebro aqui a habilidade do contador com a força das descrições, o equilíbrio da sugestão, o cheiro a pão da miragem posta ali na mesa, bastante mais duradoura do que a chama do álcool. Temo, contudo, não vir a conhecer outro refúgio que não em mim. A conversa seguiu depois outro rumo, que espero venha a desembocar em livro, tal o somatório de histórias e intricada reflexão em torno da doença e da criatividade.

Horta Seca, Lisboa, 14 Dezembro

A onda melosa do Natal cansa-me ao vómito. Tornou-se condenação inescapável, agravada pelo generalizado dever da alegria. E os nossos ritmos têm que sujeitar-se, por mais que pensemos alternativas. Acresce ser esta a estação dos livros, em país onde quase nunca chove. Há que aproveitar as gotas de água, sopesando os temas ou, por exemplo, a apetência «da época» por beaux livres. Este ano, quando mais precisávamos, falhámos todas e cada uma das ideias, por uma panóplia de razões que parece sortido de bombons baratos, a vencer o prazo de validade. A falência da distribuidora escavou sorvedouro de tempo e energia que desfez qualquer possibilidade de normal funcionamento. A própria matéria da normalidade se deixou afectar e o que, de ordinário, não faria grande mossa resultou em pequenas e médias catástrofes. Cada palavra fora de lugar, cada demora de autor ou deslize de colaborador, cada falha de matéria-prima ou cobrança de atraso, cada incapacidade nossa foi erguendo intransponíveis. Neste contexto, termos conseguido abrir, pela quarta vez, a colectiva «Princípios de Colecção» conforta-me parvamente. Sublinha que será infindável o recomeço, mesmo quando olhamos para trás, baralhando e voltando a dar parte do que fomos mostrando ao longo do annus horribilis, ou trazendo à luz os fundos, sobretudo de ilustração, que vamos recolhendo por gozo ou suscitando com os nossos projectos. O mais bonito na nossa cave, além de ser híbrida em que se desce e sobe, espelhando o bairro, são as janelas: abrem para a rua e dão para o céu. Com ou sem nuvens.

Music Box, Lisboa, 14 Dezembro

Estou na mesa a atirar obrigados a uma multidão de cabeças sem rosto em fundo negro (preciso aprender a distinguir no escuro) por causa de «Somos Contemporâneos do Impossível», do mano [José] Anjos. Para a pequena multidão serão mera cortesia, para mim fazem-se chão. De tão orgânico, «Somos…» compôs-se objecto dos representam «a vida no seu sentido adjectivo». O plural em ser dá logo ideia da cristalização de colaborações, de olhares, de gestos, de tempos e espaços que acontecem a cada página. Os encontros e desencontros, em palco e fora dele, noite e dia, à volta da palavra e apesar do gesto, íntimos mas colectivos, sopram nesta cidade. A pintura sobre papel do Simão Palmeirim, que faz capa e contracapa (reproduzida nesta página), descreve esse lugar de planos diferentes, de degraus e acessos, de contornos rápidos e toadas de branco. Tão fácil perdermo-nos nesta geometria, sem palavra. A não ser a de abysmo, onde a linha de horizonte se encolhe em curvas e contracurvas definindo a palavra antes de se voltar a perder. Esta abordagem continua no interior, com gravuras e desenhos, de arestas e passagens e florestas de prismas quadrangulares, mas também na sua proposta de reorganização da obra. «Somos Contemporâneos…» está pejado de pormenores, que o autor tem horror ao vazio. O tal índice de Palmeirim, que propõe arrumação outra, ilustra-se com máquina de escrever pautas, mas não de fazer música. Essa ficou a cargo do Carlos [Barreto], que suspira Deambulações, e acompanha esta noite as leituras da Catarina [Santiago Costa], do Valério [Romão], e da Cláudia [R. Sampaio] ainda antes do concerto dos Não Simão, de que ambos, Anjos e Simão fazem parte. Alguns dos poemas ouvem-se também «No Precipício Era o Verbo», e todos eles partilham momentos e projectos de leitura de viva voz, pelo que a intensidade invadiu a sala. Para não fugir ao habitual, a generosa leitura do mano António [de Castro Caeiro] rasga sentidos nas mais imprevistas direcções para acabar empurrando-nos em apneia para a palavra, para a amizade, para a vida. Sei que são apenas mais três vezes que as palavras-lugar-comum se escrevem, palavra, amizade, vida, mas nestas circunstâncias afianço que são a matéria dos caboucos deste livro. Tem mais. «Somos Contemporâneos do Impossível» vive do poema e para o poema, nele mergulha raízes e ergue ramos. As imagens torrenciais configuram a geografia movediça da infância e a respiração das casas erguidas ou almejadas, as ruínas dos amores e a arquitectura de existências esperando corpo, mas tudo parte ou regressa ao poema, aqui pura chama, ali relato de oficina, umas vezes cais outras navio. Recolho-me ao meu lugar: «o predador de sombras é também refém/ da vida projectada dos outros/ o estranho que se detém perante a fotografia abandonada/ que lhe dá/ e ganha vida/ enquanto novo sujeito no destino aleatório/ da contemplação»

Arquivo, Leiria, 15 Dezembro

Esta livraria consegue o milagre de inventar quem venha ouvir, em fim de tarde de sexta-feira, três maduros a ler poemas na companhia do contrabaixo. Parece impossível. Não é: somos contemporâneos da Arquivo.

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