Juventude cruel

[dropcap style≠’circle’]D[/dropcap]urante a minha recente visita à China, falei com o meu tio através do Wechat. Nessa altura, contou-me que está a escrever um livro sobre a sua juventude, passada no tempo da Revolução Cultural, e que considerava publicá-lo no estrangeiro se não fosse possível publicá-lo na China. Para nós, que vivemos fora da RPC, é difícil imaginar que uma época tão marcante da vida deste país possa ser censurada.

Nos últimos tempos o cinema chinês foi invadido por histórias românticas perpassadas pela nostalgia dos anos 90, no entanto, nunca os jovens apareceram retratados de forma tão pura, exaltada e cruel como em Juventude 芳华, o último filme de king Feng Xiaogang冯小刚. Embora os jovens chineses nascidos neste milénio não tenham grande paciência para melancolias, os espectadores mais velhos como o meu tio, que partilham o sentimento nostálgico de Feng, vão sem sombra de dúvida apreciar o filme. Por outro lado, os 146 minutos de duração da película e uma aparente glorificação do militarismo podem vir a influenciar a sua recepção fora de portas.

O filme mostra as relações turbulentas entre os membros do grupo de dança do Exército de Libertação Popular, desde o final da Revolução Cultural até aos anos 90, e a mão do realizador transformou-o num hino de exaltação ao idealismo e à capacidade de resistência. No entanto, em cada cena a palavra “emoção” impera.

Baseado na adaptação de Yan Geling do seu próprio romance – escrito a partir da sua vivência de 13 anos no “corpo de baile” do exército, o argumento estabelece a ligação entre a arte e a política. Mas estas “flores-bailarinas” parecem querer exprimir a célebre frase de Leni Riefenstahl “A realidade não me interessa”, com um heroísmo cruel. Talvez a comparação seja injusta, mas não a consigo evitar.

Não me vou alongar no argumento porque vocês devem ver este filme repleto de atitudes grandiosas e dramáticas – e deixarem-se tocar pela narrativa autobiográfica, transportada para o ecrã por uma câmara que capta paisagens de cortar a respiração, coreografias impressionantes, acompanhadas por um fundo musical de grande fôlego. De certa forma o realizador “censurou” a guerra, que só é aflorada em algumas panorâmicas sangrentas, explosivas e românticas. Mas Feng interessa-se sobretudo pela sensualidade dos militares, o que também pode ser uma forma de atrair as audiências mais jovens. A tónica colocada no corpo é também um desafio à representação oficial do Exército de Libertação Popular; uma entidade acima dos vulgares desejos dos mortais.

“A sua história não é sobre o massacre de um soldado japonês, ou sobre seres fantásticos que se apaixonam uns pelos outros? Desculpe, está banido!” Esta receita ilustra de forma concisa os assuntos tabu na China continental.

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